Fevereiro mal chegou e 2024 já tem algo muito bacana a festejar no campo editorial: a WMF Martins Fontes acaba de lançar o selo Poente, idealizado e dirigido pelo jornalista Flávio Pinheiro, só de obras de autores estrangeiros e contemporâneos pouco conhecidos no Brasil. Faço questão de ser dos primeiros a saudar esse arrebol literário.
Pra começar, uma argentina (María Negroni) e um espanhol (Juan Tallón). Ele é jornalista e já escreveu até um manual de futebol; seu rabicho, porém, são os seus confrades profissionais, escritores e poetas, sobre os quais se debruça com o apetite e o timbre do conterrâneo Enrique Vila-Matas. Em Fim de Poema, seu début nestas paragens, Tallón reconstrói as últimas horas de vida de quatro poetas suicidas (Anne Sexton, Alejandra Pizarnik, Cesare Pavese e Gabriel Ferrater) e tenta responder à pergunta de um milhão de velórios e funerais: o que teria passado pela cabeça de cada um deles antes de pôr termo à própria vida?
Poeta e ensaísta, espantosamente inteligente, culta e abusada, Negroni é uma das vozes mais originais das letras latino-americanas em atividade. O YouTube tem algumas entrevistas com ela. Há dois anos, a editora 100/Cabeças traduziu-lhe os ensaios de A Arte do Erro; faltava o principal: sua obra ficcional, da qual O Coração do Dano, com quase três anos de circulação em países de língua espanhola, é um dos carros-chefe. Sua prosa poemática e epigramática pende mais para o ensaio poético do que para o romance tout court.
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Embora já cultuada no Brasil, sobremodo pelos admiradores de Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar, Guimarães Rosa (este também reverenciado no livro), e pelos convertidos à singular ficção de Lydia Davis e David Markson, Negroni ainda é infinitamente menos presente em nossa mídia do que o homônimo drinque italiano.
Há quem admita perder o fôlego quando a lê ou ficar sem palavras depois de a ler (como quem tenta contar um sonho do qual acabou de despertar). “Cada frase dela é um relâmpago”, derramou-se uma crítica espanhola, indisfarçavelmente grata pelo clarão e o estrondo.
Suas observações sagazes, mesmo aquelas motivadas pela humilhação e pela angústia, seus confessos “instrumentos de trabalho”, me fizeram sorrir (e mesmo rir) bem mais do que o esperado numa autoficção vincada por lembranças dolorosas e cheia de espinhosas ruminações sobre a infância, o relacionamento complicado com a mãe fria, mordaz e autoritária, a clandestinidade durante os anos de chumbo na Argentina (que ela “atravessou como um cão espancado”), o exílio no exterior e um amor “teimoso como um coágulo”, entre outros danos.
Em março, com o selo Poente, chega às livrarias Em Memória da Memória, de outra Maria, a russa Maria Stepanova, não a do basquete, mas sua xará escritora e poeta.