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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Foi por conta da guerra em Gaza que conheci o poeta Mosab Abu Toha

Adorno acreditava ser impossível escrever poesia depois de Auschwitz. Os poetas de Gaza nunca pararam para pensar nisso

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Atualização:

Li, algum tempo atrás, um ensaio sobre a poesia de resistência palestina a ingleses e israelenses, substanciado por versos de poetas que, à exceção de Mahmoud Darwish e mais um ou dois, nem de nome eu conhecia.

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Do pouco que minha memória reteve, destaco as “lições de paciência e bravura” que aquelas terras ensinaram a seus bardos, a onipresença de oliveiras e os mais vivos contrastes entre colonizados e colonizadores apontados pela palestina Noor Hindi: os ocupantes plantando flores e as crianças locais atirando pedras nos tanques invasores.

Nenhum deles alterou minha preferência, na lírica regional, pelo israelense Yehuda Amichai, a quem também fui apresentado em inglês pela revista The New Yorker. Se ainda vivo (morreu há 23 anos), Amichai talvez fosse um dos signatários das cartas abertas e manifestos de escritores, editores e intelectuais – em boa parte judeus – contra a blitzkrieg israelense na Faixa de Gaza, que já se contam aos milhares – de signatários e de bombas.

Bombardeio na parte central de Gaza em 30 de outubro de 2023 Foto: Mohammed Al-Masri/Reuters

Impressiona a solidariedade global ao sofrido povo palestino e o incentivo à divulgação e leitura de seus autores por centenas de livrarias mundo afora. A carioca Leonardo da Vinci tomou a si a iniciativa de estender a resistência até nós.

Aqui ainda não corremos o risco das mesmas hostilidades experimentadas lá fora por quem se declarou abertamente solidário à causa palestina, ao cessar-fogo imediato e ao fim da estúpida confusão entre o Hamas e o Estado da Palestina. Robert De Niro teve seu discurso na entrega dos prêmios Gotham parcialmente censurado por algum ectoplasma macarthista (o ator acabou lendo o trecho censurado direto do celular) e a poeta, ensaísta e prêmio Pulitzer como editora de poesia do New York Times Anne Boyer largou o emprego para não se comprometer com as “mentiras belicistas” e os “eufemismos macabros” do jornal a respeito da guerra em Gaza.

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Foi, aliás, por conta do conflito que fiquei conhecendo o poeta Mosab Abu Toha, cuja recente prisão pelas forças de Netanyahu repercutiu como há muito não se via na mídia internacional. Ele ficou pouco tempo detido, mas o suficiente para sujar ainda mais a encardida imagem do atual governo israelense.

Ex-poeta visitante na Universidade Harvard, Toha ganhou espaço e prestígio em publicações importantes dos EUA, cada vez mais receptivas às suas observações, algo irônicas e melancólicas, sobre a vida (em especial sua vida familiar) em Gaza. Achei tocante o seu necrológio (Obit) da “sombra que deixou para trás, escondida na escuridão da noite e à espera de sua volta a Gaza” e também a descrição de uma pelada infantil em que oito crianças morrem durante um bombardeio, quatro de cada time, forçando o árbitro a encerrar o jogo empatado em 4 a 4.

Adorno acreditava ser impossível escrever poesia depois de Auschwitz. Os poetas de Gaza nunca pararam para pensar nisso.

Opinião por Sérgio Augusto

É jornalista, escritor e autor de 'Esse Mundo é um Pandeiro', entre outros

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