“Seria o café um vício aceitável?”, questiona Michael Pollan em ‘Sob efeito de Plantas’

Colaborador do jornal ‘The New York Times’ faz um estudo minucioso sobre mescalina, álcool e cafeína e seus impactos na sociedade

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Por Miguel Groisman

“Nada a respeito das drogas é simples”, introduz, sem cerimônia, Michael Pollan no seu mais recente livro Sob Efeito de Plantas (Intrínseca, 2023), uma autodeclarada investigação pessoal de três moléculas na natureza - todas alcalóides - que nos permitem alterar nosso estado de consciência e as respectivas plantas que as produzem: a morfina na papoula; a cafeína no café e no chá; e a mescalina produzida pelo peiote e pelo cacto São Pedro. Cada uma representa uma das três amplas categorias de compostos psicoativos (sedativo, estimulante e alucinógeno) e ocupa um capítulo no livro, cuja construção se dá à base da experiência do autor com tais substâncias, somando a isso perspectivas histórica, antropológica e botânica. É, justamente, nessa alternância que Pollan se revela ao leitor como um pesquisador de fôlego; já como relator das suas próprias jornadas, o estadunidense relembra que é jornalista de longa data (escreve há tempos sobre botânica e comida, além de colaborar frequentemente com o jornal The New York Times). A combinação dá ritmo e fornece um respiro entre os tópicos mais carregados, o nosso interesse pelo livro é então estabelecido não só pela quantidade enorme de informações reunidas por Pollan, mas também pela sua voz. Não poucas vezes, na sua conversa com o leitor, ele se afasta da figura do intelectual contemporâneo autoindulgente e destrincha seu processo (expondo até mesmo inseguranças acerca da sua capacidade em terminar o artigo em questão). É exatamente assim, inclusive, que se inicia o primeiro capítulo do livro, “Ópio”, uma revisitação (adicionada de um prólogo e epílogo recentes) de um artigo originalmente publicado em abril de 1997.

No começo do ano anterior, 1996, Pollan havia recebido do seu editor na Harper’s Magazine uma sugestão de pauta motivada pela publicação do livro de uma editora clandestina, “Ópio para as massas”. Diante disso, ele conta ter ficado intrigado pela ideia de que poderia cultivar papoulas e produzir uma das mais antigas drogas psicoativas em seu jardim a partir de sementes de fácil obtenção. “Decidi tentar, só para ver o que ia acontecer”. A história, que começou como “uma espécie de brincadeira”, logo se transformou em um “pesadelo real” quando o jornalista se viu envolvido em “uma discreta, mas determinada campanha federal para eliminar o conhecimento a respeito de um narcótico caseiro fácil de produzir antes que se tornasse uma moda”.

O cacto peyote é encontrado em um deserto no México  Foto: ALFREDO ESTRELLA / AFP

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É importante sinalizar que o período em que Pollan conduz seu experimento é o da guerra às drogas levada a cabo pela administração Clinton nos Estados Unidos, quando “uma série de decisões da Suprema Corte em casos de drogas deu ao governo uma gama de novos poderes” - incluindo confisco de propriedades (casas, carros, terrenos) envolvidas em crimes de drogas, independente de indiciamento, muito menos condenação. Para Pollan, a “nova leva de leis, penalidades e táticas de polícia do governo [grifo do autor]” acabou ampliando “o escopo do devido processo jurídico, e diminuindo proteções há muito estabelecidas contra buscas ilegais, dupla penalidade e aprisionamento”. A descrição do contexto histórico dá oportunidade para o autor indagar o que a criminalização das drogas fez para reduzir os índices de vício e de mortes por overdose; se um dos legados dessa empreitada não foi levar à prisão mais indivíduos por crimes não violentos (cabe ao leitor entrar ou não, mas aqui Pollan também deixa uma porta aberta para questionar como as próprias leis são feitas e a satisfação da sociedade na punição per se); e se há causalidade, não só correlação, entre a criminalização das drogas e o aumento da potência das drogas ilícitas.

“No mesmo verão em que a Drug Enforcement Administration (DEA) [Agência de Fiscalização de Drogas] perseguia discretamente agricultores, vendedores de sementes, escritores e outros peixes pequenos envolvidos com a papoula, a Purdue Pharma [...] começava a promover um novo opioide de liberação lenta chamado OxyContin”, lembra Pollan com indignação, no prólogo do artigo. “As prescrições de opioides aumentaram gradualmente ao longo dos anos 1980 e início dos anos 1990. Mas não foi até meados da década de 1990, quando as empresas farmacêuticas introduziram novos produtos à base de opioides - e, em particular, OxyContin [...] - que tais prescrições aumentaram e o uso de opioides para tratar a dor crônica se tornou generalizado”, aponta a também jornalista Sarah DeWeerdt no artigo “Tracing the US opioid crisis to its roots” [Rastreando a crise de opioides nos EUA até suas raízes], publicado na revista Nature. “Antes da atual epidemia, os opioides eram prescritos principalmente para usos de curto prazo, como alívio da dor após cirurgia ou para pessoas com câncer avançado ou outras condições terminais”.

Sobre o papel específico do OxyContin nessa crise, DeWeerdt explica: “A Purdue Pharma e outras empresas promoveram fortemente seus produtos opióides. Eles pressionaram os legisladores, patrocinaram cursos de educação médica continuada, financiaram organizações de profissionais e de pacientes, e enviaram representantes para visitar médicos individualmente. Durante todas essas atividades, eles enfatizaram a segurança, a eficácia e o baixo potencial de dependência dos opioides prescritos”. Ainda em 2007, a Purdue Pharma se declarou culpada por sua propaganda enganosa montada em cima de tais declarações; anos depois, em 2020, a empresa também se declararia culpada por fraude e por violar o estatuto anti-suborno dos Estados Unidos. Segundo dados apresentados pelo CDC (Center for Disease Control and Prevention) [Centro de Controle e Prevenção de Doenças], entre 1999 e 2020, mais de 260.000 pessoas morreram nos Estados Unidos por overdose envolvendo opioides prescritos. Foram 3,442 em 1999 contra 16,416 mortes relatadas no ano de 2020.

Sementes de papoula, a planta é cultivada pelo botânico, autor do livro Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO

Retornando ao seu relato empírico e botânico, na primeira semana de julho de 1996, Pollan nota na papoula plantada em seu jardim, “no fim de uma haste fina, curvada para baixo, um botão do tamanho de uma cereja, coberto por uma penugem macia e peluda. A cobertura externa do botão, ou cálice, havia se aberto, e era possível ver as pétalas vermelhas dobradas dentro, embrulhadas como um paraquedas. Na manhã seguinte as pétalas — cinco deltas de um intenso vermelho sedoso e com manchas pretas — haviam se desenrolado por completo, descartando o cálice e se voltando para o sol”. Veja, Pollan também é um jardineiro apaixonado (embora de habilidades medianas, em suas palavras), o que se mostra aqui e no último capítulo, “Mescalina”, através do seu fascínio pelas plantas cultivadas, a riqueza de detalhes com a qual as descreve - ele realmente se encanta com a natureza.

Ele acaba tendo êxito em seu cultivo e consegue fazer o chá de papoula, cujos preparo e efeitos são descritos. “O chá de papoula não parecia acrescentar nada de novo à consciência, da forma que fumar maconha pode produzir sensações e emoções novas e inesperadas; em comparação, ele parecia subtrair aspectos: ansiedade, melancolia, preocupação, pesar”, nos conta e adiciona que se sentia “impregnado de corpo e mente por uma sensação distinta de bem-estar; as palavras ‘caloroso’ e ‘aquoso’ estão em minhas anotações”. De acordo com o autor, isso se deve aos alcalóides no ópio, moléculas complexas “quase idênticas às moléculas que nosso cérebro produz para lidar com a dor e se autorecompensar com prazer”.

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O chá da papoula seria então uma substância abnóxia? O próprio Pollan, de forma despropositada, prevê uma resposta ainda na introdução do livro: “Muito mais do que nós, os gregos da Antiguidade entendiam a natureza dúbia desses elementos; uma compreensão refletida no caráter ambíguo do termo que usavam para elas: pharmakon. Um pharmakon pode ser tanto um remédio quanto um veneno; tudo depende do uso, da dose, da intenção, do cenário e do ambiente”. Seria razoável acrescentar que a predisposição genética para a dependência também é um fator a ser considerado nessa transformação de remédio a veneno.

Por outro lado, seria o café um vício aceitável? Questiona Pollan

Por outro lado, seria o café um vício aceitável? Questiona Pollan ao iniciar o segundo capítulo de Sob Efeito de Plantas. “São raras as pessoas que pensam na cafeína como uma droga, e mais raras ainda as que veem nosso uso diário como um vício. Sua ingestão é tão difundida que é fácil ignorar o fato de que ter cafeína no organismo não é um patamar normal de estado de consciência, mas, na verdade, um estado alterado”, afirma. Se o vício passa tão despercebido, só a abstinência conseguiria colocar a sua influência a teste, “não era algo que eu realmente quisesse fazer, mas cheguei à relutante conclusão de que a apuração em curso exigia isso. Vários dos especialistas que eu estava entrevistando sugeriram que não seria possível entender o papel da cafeína na minha vida — seu poder invisível, mas penetrante — sem me abster dela e, em seguida, presumivelmente, voltar a consumi-la”.

Nos três meses em que interrompeu seu consumo de cafeína, Pollan viu em primeira mão os sintomas da privação descrita pelos cientistas, entre eles dor de cabeça, fadiga, dificuldade de concentração, diminuição da motivação, irritabilidade e disforia. Essa dependência causada em nós pela cafeína é usada como uma forma de defesa adotada pelas plantas que a produzem, em particular Coffea e Camellia sinensis. “A maioria da vasta gama de químicos vegetais, ou alcaloides, que as pessoas usaram para alterar a tessitura da consciência é composta por aqueles originalmente selecionados para defesa”, explica Pollan. “No entanto, mesmo no mundo dos insetos, a dose produz o veneno e, se for baixa o suficiente, um químico feito para defesa pode servir a um propósito muito diferente: atrair e garantir a lealdade duradoura dos polinizadores. É o que parece estar acontecendo entre as abelhas e certas plantas produtoras de cafeína, uma relação simbiótica que pode ter algo importante a nos dizer sobre nossa própria relação com essa substância”.

Parece estar acontecendo entre as abelhas e certas plantas produtoras de cafeína uma relação simbiótica que pode ter a ver com nossa própria relação com essa substância

As abelhas são “enganadas” a voltar à planta que produz néctar cafeinado já que a substância as leva a “superestimar” a qualidade do mesmo, o alcalóide as ajudaria a memorizar e assim “fidelizar” seu polinizador. De certa forma, nós também somos enganados a voltar à cafeína por pensarmos (ou “lembrarmos”) que ela nos conferiria energia? Pollan assinala que “a cafeína é uma molécula minúscula que se encaixa perfeitamente em um receptor importante no sistema nervoso central, permitindo que ela o ocupe e, portanto, bloqueie o neuromodulador que se encaixaria nesse receptor e o ativaria”. Esse neuromodulador é a adenosina, responsável por desacelerar as operações mentais no final do dia e nos preparar para o sono. E onde está a manobra? “À medida que o fígado remove a cafeína da circulação, a represa que segura toda a adenosina acumulada se rompe e, quando essa substância química inunda o cérebro, a pessoa desaba, sentindo-se ainda mais cansada do que antes da primeira xícara de café”, explica Pollan e indaga: “Então, o que essa pessoa vai fazer? Provavelmente tomar outra xícara”. Um dos problemas disso é que a cafeína tem contribuído para uma “crise invisível de saúde pública”, na qual ela não é apenas uma das causas, mas também “a principal ferramenta com a qual contamos para solucionar o problema”.

A cafeína é amplamente consumida nos quatro cantos do mundo; até que ponto isso é bom? Foto: ALEXANDRE TOKITAKA /ESTADÃO

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Até certo ponto, a ação da cafeína no retardamento do sono ajudou a nos libertarmos do ritmo do sol que, por sua vez, acabava ditando o nosso relógio biológico. Isso contribuiu, indiretamente, para a ascensão de uma forma do capitalismo selvagem que conhecemos hoje. “Antes da cafeína, a ideia de um turno tardio, sem nem falar de um turno noturno, era inconcebível”, pontua Pollan e complementa que a cafeína “intensifica a consciência de holofote, ou seja, um processamento cognitivo focado, linear, abstrato e eficiente mais intimamente associado ao trabalho mental do que ao brincar”. Logo, “o conceito de ‘disciplina corporal’ do filósofo Michel Foucault poderia ser usado para descrever os efeitos da cafeína, uma vez que ela ajudou a dobrar os seres humanos à roda da Máquina e às exigências de uma nova ordem econômica e mental”.

É curioso notar que mesmo a cafeína sendo útil à ordem econômica vigente e, como antes apontado por Pollan, raramente vista como uma droga, não é imune ao pensamento altamente moralista da sociedade. “‘Eu jamais conseguiria’, dirá um amigo, ou ‘Eu realmente devia tentar, sei que isso me faria dormir melhor. Mas não consigo imaginar como seria enfrentar a manhã’. Naturalmente, essas reações me fazem sentir como se eu de fato tivesse realizado algo digno de admiração. Suspeito que estou me beneficiando dos ecos do puritanismo que ainda reverberam em nossa cultura, que até hoje concede pontos por autodisciplina e superação do desejo. O vício, mesmo aquele em uma droga relativamente inofensiva e adquirida com facilidade como a cafeína, é visto como um indício de fraqueza de caráter”.

Pollan termina o livro trazendo à conversa a mescalina, ainda pouco discutida entre os psicodélicos clássicos - psilocibina (“cogumelo mágico”), LSD (Dietilamida de Ácido Lisérgico), DMT (Dimetiltriptamina) - e a única substância em Sob Efeito de Plantas” utilizada em um contexto cerimonial. Entre suas fontes vegetais estão o peiote e o cacto São Pedro. O primeiro pode ser encontrado nos Estados Unidos nos chamados Jardins Peiote, uma faixa de arbustos espinhosos que corre ao longo dos dois lados do Rio Grande e onde o cacto peiote cresce selvagem. Embora o São Pedro também produza mescalina, o faz em concentrações mais baixas; nativo dos Andes, se tornou comum na Califórnia, onde é uma planta ornamental, já que seu cultivo é permitido por lei - ao contrário de ambos peiote e mescalina, que são listados (assim como os psicodélicos clássicos antes apresentados) como “Classe 1″ pela DEA, o que indica potencial para abuso da substância, nenhum uso médico atualmente aceito para tratamento nos Estados Unidos e carência de segurança para uso mesmo sob supervisão médica. Diante disso, um leitor leigo - como eu - poderia se perguntar: “Mas como o uso médico pode ser descartado se a substância pouco é estudada?”. Pollan parece compartilhar dessa inquietação quando sinaliza que não tinha conhecimento de nenhum estudo clínico sendo desenvolvido nos Estados Unidos com peiote e/ou mescalina durante o período de escrita do livro (publicado em inglês em julho de 2021).

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Michael Pollan também escreveu "Caffeine," sobre o vício da cafeína  Foto: Jahi Chikwendiu / Washington Post

Importante notar que a utilização do cacto peiote pelos nativos norte-americanos lhes foi assegurada (e apenas a eles) depois de uma árdua batalha que resultou em alterações na Lei de Liberdade Religiosa dos Indígenas Americanos em 1994. Embora a Igreja Nativa Americana tenha sido oficialmente estabelecida em 1918, o uso cerimonial do peiote pelos nativos norte-americanos já havia sido documentado na década de 1880.

Diferente da maioria das religiões, as cerimônias da Igreja Nativa Americana, “chamadas de reuniões, não acontecem num cronograma fixo, mas sempre que o ‘cantoneiro’, ou líder, determina que há razão para se reunir”, conta Pollan. As razões são diversas: “Curar um doente; tratar alguém que sofre com alcoolismo ou outro vício; ajudar um casal cuja relação está abalada; mandar um soldado para a guerra; resolver uma disputa na comunidade; marcar uma formatura ou outro rito de passagem”. Sua importância cultural é tamanha que membros da Igreja Nativa Americana entrevistados por Pollan creditam ao peiotismo “a revitalização e a manutenção” da cultura nativa norte-americana.

Utilizando como base a obra A Different Medicine: Postcolonial Healing in the Native American Church [Um remédio diferente: Cura pós-colonial na Igreja Nativa Americana], do antropólogo e psicólogo clínico Joseph D. Calabrese, Pollan explica que “assim como outros compostos psicodélicos, a mescalina do peiote induz um estado de plasticidade mental, um estado em que a pessoa está altamente sugestionável e, portanto, aberta a aprender novos padrões de pensamento e comportamento”.

FILE PHOTO:Pílulas de Ecstasy, MDMA Foto: Reuters

Calabrese descobriu que entre alguns navajos (um dos povos indígenas nos Estados Unidos) há uma crença de que o peiote seja “um espírito onisciente”, que de alguma forma “conhece as pessoas melhor do que elas se conhecem; que ele tem o poder de expor suas falhas e forçar a pessoa a confrontá-las”. Para Pollan, o peiote funciona na vida dos membros da Igreja Nativa Americana em grande medida como um superego. “O que eu acho impressionante no relato de Calabrese é que temos no peiote uma ‘droga’ que, em vez de subverter as normas sociais, na realidade as reforça”, ele escreve. “Comparada aos psicodélicos no Ocidente nos anos 1960, o papel do peiote na comunidade nativa americana é notavelmente conservador” e se distanciaria da compreensão ocidental comum das drogas “organizada em torno das ideias de hedonismo, da vontade de escapar e o desejo de anestesiar os sentidos”. Segundo o autor, “o fato de que esse modelo exista (e existe em outras culturas tradicionais também) exige que reconsideremos todo o conceito de ‘drogas’ e as falhas morais que associamos a elas”.

Nesse processo de reconsideração, Pollan nos deixa com algumas questões: O que torna então uma substância ilícita? Seria a qualidade da dependência? A toxicidade de determinada substância? A “perspectiva do prazer — do uso recreativo”? “Poderiam ser as propriedades ‘alteradoras do estado da mente’ de uma droga que a tornam maligna?”.

Guiado pelo passo curioso de seu autor, Sob Efeito de Plantas passeia sempre por um jardim de veredas que se bifurcam, onde os caminhos se multiplicam a cada volta. “Nada a respeito das drogas é simples”.

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