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Sob o signo de Faulkner

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Por ANTONIO SKÁRMETA É ESCRITOR, AUTOR DE, O CARTEIRO, O POETA, DE O DIA EM QUE e A POESIA DERROTOU UM DITADOR (RECORD)
Atualização:

ANTONIO SKÁRMETAJosé Donoso é um escritor emblemático do que no Chile chamam de geração de 1950, expressão que alude aos autores que na metade do século passado começaram a publicar e a mudar o tom e os temas da geração neorrealista. Eles colheram influência dos romances americanos, em especial os de Faulkner, e foram sensíveis aos movimentos europeus do novo romance e do absurdo.Seus textos iniciais surgiram antes da explosão do realismo mágico, e suas preferências não descolam - em que pesem as inovações formais - do realismo. Mais interessados em investigar a psicologia de seus heróis - na verdade, "anti-heróis" - do que em enfoques sociológicos, eles se sentem cosmopolitas, sofisticados, e dialogam profundamente com o cenário internacional. Entre eles, especialmente Donoso, que atuava como editor literário da revista Ercilla. Desde muito cedo, ele se sentiu incomodado com o provincianismo da prosa chilena que não alcançava a alta visibilidade dos poetas Pablo Neruda, Vicente Huidobro e Gabriela Mistral.Com seu primeiro romance, Coronación, ele recebeu elogios de Carlos Fuentes e conseguiu um prêmio e a publicação da obra em inglês, façanha pouco frequente naqueles anos. Já nesta ficção, como em seu livro de contos El Charleston, se perfilam os traços que farão da geração de 50 um movimento bastante homogêneo em quase todos os gêneros.O motivo central neles é a tensão entre as diferentes classes sociais: um universo onde dominam patrões que herdaram suas propriedades e levam uma vida cômoda, carente de sentido, tratando de obedecer aos códigos da "gente bem" que perdeu seu brilho social e não consegue se adaptar aos novos tempos; a buliçosa massa de seres "populares" que pululam nas metrópoles crescentes, enfeadas pela industrialização, e portadores, assim lhes parece, de uma cobiça que aspira a rapinar seus bens.Nas fantasmagorias de seus protagonistas burgueses, o povo é visualizado como uma manada de seres bárbaros, feios, andrajosos, insolentes: invasores.Los invasores. Assim se chama a mais importante obra teatral da segunda metade do século passado no Chile. Foi escrita por Egon Wolf e representada no que é hoje o Teatro Nacional em 1963, meses antes de uma eleição presidencial na qual a crescente esquerda marxista chilena poderia triunfar. Para evitá-lo, o poder conservador aceitou, a contragosto, votar em um democrata cristão, Eduardo Frei, que prometia aos trabalhadores introduzir reformas que significariam que parte da riqueza do país os beneficiaria. Para a direita, isto era um dramático "mal menor". O candidato da esquerda revolucionária era Salvador Allende, o épico doutor que seria derrotado nessa eleição, mas alcançaria a presidência em 1970.A obra de Wolf, um industrial consciente dos abusos do poder conservador, não é revolucionária, apenas pretende mostrar que a ética sem moral dos ricos desesperou os andrajosos, que vão tomar a cidade, suas casas, suas indústrias, seus quartéis de polícia. E, de fato, é isto que sucede na obra: um exército de monstros entra na casa de Lucas Mayer e submete a família a vexações e a uma espécie de "tribunal popular" para julgar o dono da casa.Encena-se assim o terror da sociedade chilena de que aqueles seres repelentes que estão numa "ficção" talvez sejam seres "reais" em Santiago se não houver alguma mudança. Quando o tormento da família do industrial chega ao auge, Lucas grita e com este grito desperta. Tudo não passava de um pesadelo.Catarse? Não. Quando ele abraça aliviado a mulher, uma mão quebra a janela e aciona o trinco da porta para entrar. "Lição de casa, queridos espectadores!" Donoso é um mestre em explorar as relações entre as classes. E enquanto vivia no Chile, os jornalistas e críticos o classificaram como um cronista "da decadência da burguesia", epíteto que ele odiava intensamente. Muito cedo, seus personagens, incapazes de viver sua sexualidade, presos a rígidos códigos religiosos, e habitantes de asfixiantes casarões, começam a se inquietar e se lançam para o exterior onde pululam os pobres, os andrajosos, os ameaçadores "ressentidos", em ações sublimadoras do desejo reprimido; uma delas, a caridade. Assim é em seu romance Este Domingo no qual a protagonista se vê perturbada por seu contato com o povo.Também no conto Paseo, a mulher, que vive uma vida frígida e monótona com seus irmãos solteirões e maníacos, decide desaparecer na grande noite de fora, seguindo os passos da cadela que foge da casa. Os heróis de Donoso vivem angustiados, temerosos de sentimentos subterrâneos que desafiam as normas morais, os quais percebem como monstruosos. Querem fugir da realidade que os oprime, mas não estão dotados para enfrentar a outra realidade que os excita.Nos romances de Donoso, os "invasores" estão dentro da casa: são os criados, as empregadas domésticas, os motoristas, "os homenzinhos" que consertam pequenos defeitos. São seres que possuem "carne", sensualidade, erotismo: como a ama de leite de Coronación, a quem o patrão solteirão deseja, e ao qual ela finge ceder só para permitir que seus cúmplices invasores entrem para roubar a mansão. Estes seres de fora têm poderes satânicos, e uma perigosa energia política e sexual que desafia os habitantes estéreis dos casarões. Incapazes de compor suas vidas com estes materiais caóticos, os personagens da geração de 50 se abandonam voluntariamente ao álcool, ao sono, à loucura.Quando Donoso resistia à redução "social" que faziam os comentaristas de seus primeiros romances, é porque ele apontava para uma presa existencial muito maior: o fundo mítico, espesso, por vezes ameaçador, que há na obscuridade viscosa de homens e mulheres. A duvidosa ordem racional em que vivemos desterrou às cavernas da psique os pesadelos de um inferno em que reinam os bruxos, os seres disformes, os monstros, os "mudinhos". Este barro, este esterco atuam como contracanto das aparências. "É preciso correr os espessos véus", é a frase emblemática de Donoso.A ruptura que a geração do "boom" faz com as formas miméticas, e o desprezo referencial por uma "realidade", permite que Donoso também levante as âncoras e zarpe por novos mares para chegar a mundos autônomos, monstruosas ilhas feitas do que somos e negamos.Territórios fantasmagóricos onde voa "o obsceno pássaro da noite". / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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