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‘A reforma tributária confirma a nossa teimosia com o fracasso’, diz Marcos Lisboa

Economista afirma que reforma que tramita no Congresso é melhor do que o sistema atual, mas lamenta que proposta ‘tenha sido capturada por grandes grupos de interesse’

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Por Adriana Fernandes
Foto: WERTHER SANTANA
Entrevista comMarcos Lisboaeconomista

BRASÍLIA - O economista Marcos Lisboa considera que a proposta original de reforma tributária está sendo “impressionantemente” deturpada com o tratamento privilegiado que está sendo concedido a diversos setores. Ao Estadão, Lisboa diz que o valor de R$ 60 bilhões por ano de aporte do governo federal ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional é muito alto para o tamanho das dificuldades fiscais do País.

“A reforma confirma a nossa teimosia com o fracasso. As regiões do Nordeste que estão com aumento de renda relevante, nos últimos 20 anos, são aquelas que estão chegando com o agronegócio. Não foi pelas tradicionais políticas de desenvolvimento regional, baseadas exclusivamente na concessão de incentivos para algumas empresas, com poder de mobilizar o setor público. Essas, infelizmente, fracassam há mais de 60 anos”, avalia Lisboa, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica no governo Lula 1.

Lisboa critica o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por falar que o valor do fundo é pequeno perante um Orçamento de R$ 2 trilhões. E afirma que a reforma está sendo capturada pelo tradicional patrimonialismo brasileiro que fala: “veja bem, eu sou especial, não posso pagar tributos como os demais”.

'O Brasil é um país curioso em que o rico sempre é outro', diz o economista Marcos Lisboa. Foto: Felipe Rau/Estadão

“É um País que vai mantendo muito das desigualdades de renda. Um País onde o oportunismo é remunerado”, diz. Lisboa lamenta que a reforma esteja sendo desvirtuada, mas pondera que ela é melhor do que o sistema tributário que se tem hoje: “o sistema atual é absolutamente disfuncional. É uma pena o Brasil perder a oportunidade de fazer uma reforma mais eficaz”.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como avalia as mudanças feitas na proposta de reforma tributária pelo relator no Senado, Eduardo Braga, com mais dez setores e atividades com tratamento diferenciado?

É muito ruim. A gente tem no Brasil uma política, em particular recentemente no Senado, muito permeável a grupos organizados de uma forma impressionante. Por que profissionais liberais têm que pagar menos impostos do que o resto da sociedade? Advogados e outros grupos que já estão beneficiados pelo sistema do Simples. Não tem razão para um escritório de advogado que fatura R$ 30 milhões por ano pagar menos tributos do que outras atividades, como também bares e restaurantes, hotéis, agências de turismo. Por que o agronegócio paga menos impostos? Como é que o Senado aceita isso? É um País que vai mantendo muito das desigualdades de renda. Um País onde o oportunismo é remunerado.

As negociações da reforma ilustram isso de forma mais transparente?

Ela está preservando o patrimonialismo brasileiro, em que alguns grupos que se organizam de forma mais eficaz pagam menos tributos do que os demais - e o interesse da maioria, o bem comum, é deixado de escanteio. Não tem nenhuma razão para o setor do agronegócio estar fora da reforma (pela proposta, agronegócio tem tributação reduzida). Trata-se de um tratamento privilegiado da reforma, como também turismo e aviação (setores que estão em regimes específicos). Alguns pagam menos, forçando os demais a pagar. É inacreditável. A regra de tributação sobre o consumo deveria ser a mesma para todas as atividades produtivas, a mesma alíquota. O Brasil é um país curioso em que o rico sempre é outro. Grupos como advogados, médicos, consultorias de economistas, que estão no 0,1% do País dizem “eu sou classe média” para pagar menos impostos.

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Nesse sentido, o resultado da reforma é um retrato do que se vê há muito tempo no Brasil?

É uma pena, porque se tinha uma proposta tecnicamente muito bem desenhada e republicana, a PEC 45, que ajudava a reduzir as desigualdades. Ela foi deturpada na Câmara. E foi impressionantemente deturpada ainda mais no Senado. Ela está desvirtuada pelo tradicional patrimonialismo brasileiro, que fala: “veja bem, eu sou especial, não posso pagar tributos como os demais”.

Como a proposta de reforma pode sair com a votação no Senado e depois novamente na Câmara?

É a minha preocupação. As demais atividades produtivas vão ter que pagar mais tributos para dar conta dos benefícios desses grupos organizados. Existe também muita desinformação. Empresas que são essencialmente exportadoras, que estarão isentas do IVA (Imposto sobre Valor Agregado), pedindo benefícios. Outras que vendem para outras empresas, que vão gerar crédito tributário para seus compradores e que, portanto, poderão aumentar seus preços. Muito lobby que revela poder de barganha, porém sem saber muito bem o impacto na reforma - mas que, mesmo assim, pede, e consegue, distorções tributárias que prejudicam o restante da sociedade. Incrível o oportunismo, a falta de compromisso com o bem-comum e a incompetência técnica de muitos grupos organizados. Pior ainda: senadores atenderem a essas demandas.

O aumento do valor do aporte do governo federal de R$ 40 bilhões para R$ 60 bilhões para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, previsto no relatório do Braga, não tem fonte de financiamento. E o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, diz que é um pequeno valor em relação a um Orçamento de R$ 2 trilhões.

Confesso que eu não entendi a declaração do ministro, porque o Orçamento brasileiro é muito engessado e mais de 90% dele está amarrado às despesas obrigatórias. Então, o que sobra do Orçamento para as despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos) é uma fração. Estamos falando de R$ 140 bilhões. E, vamos combinar: são políticas regionais que fracassaram imensamente no País nos últimos 60 anos. A Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) tem mais de 60 anos. Qual foi o resultado da Sudene e dos subsídios pela Sudene e pelo Banco do Nordeste que foram eficazes para o desenvolvimento regional? A gente não consegue reconhecer no Brasil o fracasso das políticas do desenvolvimento regional. São recursos gastos sem impacto social.


É uma pena o Brasil perder a oportunidade de fazer uma reforma mais eficaz. Como é que a gente continua nessa agenda de preservar as desigualdades no País?

A reforma tributária dobra essa aposta?

A reforma confirma a nossa teimosia com o fracasso. A desigualdade regional caiu onde? No Centro-Oeste. Aí, foi o agronegócio que conseguiu desenvolver e gerar aumento de renda. As regiões do Nordeste que estão com aumento de renda relevante, nos últimos 20 anos, são aquelas que estão chegando com o agronegócio. Não foi pelas tradicionais políticas de desenvolvimento regional, baseadas exclusivamente na concessão de incentivos para algumas empresas, com poder de mobilizar o setor público. Essas, infelizmente, fracassam há mais de 60 anos.

Os Estados menos desenvolvidos argumentam que, como não poderão mais dar incentivos para atrair investimentos com a aprovação da reforma, as empresas vão voltar para São Paulo, onde há melhor infraestrutura. Não é um problema para eles?

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O que a reforma faz é que os tributos agora vão para o destino, para onde os bens e serviços são consumidos. A reforma tributária, então, reduz a desigualdade no recebimento de receitas tributárias. É o contrário disso. A reforma diminui as desigualdades entre as cidades. A imensa maioria das cidades será beneficiada, sobretudo as mais pobres. A mesma coisa acontece com os Estados. Quem perde são alguns dos Estados mais ricos. Quem ganha são os Estados mais pobres. Essa é a parte 1 da história. A parte 2 é que a política de desenvolvimento tradicional realizada no Brasil, de dar subsídios a montadoras para se instalarem nos seus Estados, fracassou. E a gente insiste no mesmo erro. Agora, confesso que a fala do ministro Haddad é surpreendente.

Por quê?

Temos um problema fiscal grave. No Brasil, a maior parte das despesas é obrigatória. O que sobra é um valor bastante pequeno, e o valor desse fundo é muito alto.

É melhor ter uma reforma assim do que não ter nada?

O sistema atual é absolutamente disfuncional. É uma pena o Brasil perder a oportunidade de fazer uma reforma mais eficaz. Como é que a gente continua nessa agenda de preservar as desigualdades no País? Veja o exemplo da desoneração cesta básica. Se tributar a cesta básica e transferir os recursos para o Bolsa Família, a desigualdade de renda cai 12 vezes mais do que desonerar. É muito mais eficaz tributar a cesta básica e devolver o dinheiro. Se de fato você quer defender os mais pobres, tem que defender a tributação da cesta básica e a devolução do imposto pelo Bolsa Família. Se quer defender alguns produtores do agronegócio, que querem pagar menos do que os demais, aí você defende a desoneração da cesta básica.


Incrível o oportunismo, a falta de compromisso com o bem-comum e a incompetência técnica de muitos grupos organizados. Pior ainda: senadores atenderem a essas demandas.

O relator fez uma trava para o aumento da carga tributária. Como avalia?

São as saídas brasileiras de atalho ineficazes. Se concede uma série de benefícios para alguns setores, os demais reclamam, e você fala “não, não, a carga tributária não vai aumentar”. Mas como é garantido o equilíbrio das contas públicas? Põem um teto para a alíquota, mas, ao mesmo tempo, o governo continua aumentando as despesas. E os Estados, que tiveram imensos benefícios de arrecadação e também do não pagamento da sua dívida com União com a anuência do STF, criam novos gastos permanentes. As cidades também. E ficam falando: “estamos sem dinheiro”. O Brasil fica nesse ciclo disfuncional: quando tem aumento de arrecadação, eleva-se a despesa permanente; depois, falta dinheiro e tem que aumentar a arrecadação. E não pode aumentar a carga tributária.

Mesmo assim, vale a pena aprovar a reforma?

Ela é melhor do que o que nós temos hoje. Mas é uma pena que tenha sido capturada por grandes grupos de interesse. O ideal seria que toda decisão de consumo pagasse a mesma alíquota do imposto. Esse é o princípio do IVA. À medida que vai criando esses puxadinhos, com regras diferentes para decisões de consumo diferentes, isso vai levando a decisões diferentes e escolhas de investimento ineficientes. Todo ponto central do IVA é não prejudicar a produtividade e o crescimento. Na hora em que se começa a beneficiar áreas do agronegócio, turismo e outras atividades, o resto da sociedade vai pagar mais caro para transferir renda para esses setores. Isso induz escolhas de tecnologia e produção menos eficientes. O custo dessas exceções é muito maior do que simplesmente uma alíquota (padrão) maior (do novo imposto).

Falta empenho do governo para barrar isso?

Eu acho que tem uma complacência da sociedade geral com as demandas desses grupos organizados. Como é que hotéis e agências de viagem têm um tratamento privilegiado na reforma? E isso não é de hoje. Nos últimos três anos, a quantidade de medidas que foram aprovadas garantindo o benefício de privilégios é impressionante. Temos uma sociedade e uma política que é permeável a essas pressões.

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