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Haddad: ‘Queremos abrir a caixa-preta das renúncias fiscais, detalhar CNPJ por CNPJ’

Ministro da Fazenda diz que está preparando com a Advocacia-Geral da União lista para explicitar todos os privilégios

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Por Adriana Fernandes e Murilo Rodrigues Alves
Atualização:
Foto: DANIEL TEIXEIRA
Entrevista comFernando Haddadministro da Fazenda

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, antecipou ao Estadão que quer abrir o que ele chama de “caixa-preta” das renúncias tributárias, o volume de recursos que o governo abre mão de arrecadar e que produz um buraco de R$ 600 bilhões no Orçamento.

Segundo ele, o Ministério da Fazenda prepara com a Controladoria Geral da União (CGU) a divulgação da lista de “CNPJ por CNPJ” das empresas que hoje são beneficiadas por renúncias e subsídios, chamados de “gastos tributários”.

Uma medida cobrada há muitos anos por setores da sociedade civil, mas que nunca saiu do papel com a alegação de que se trata de sigilo fiscal. Haddad diz que esse não é seu entendimento, nem do comando atual da Receita Federal.

Para ele, essa caixa-preta é a “maior da história”, muito mais alta do que o orçamento secreto, mecanismo revelado pelo Estadão de distribuição de verbas a parlamentares sem critério e transparência em troca de apoio político. “Só estamos pagando R$ 700 bilhões de juros porque estamos pagando R$ 600 bilhões de renúncia. É simples assim.”

A meta de Haddad é cortar um quarto dos privilégios – R$ 150 bilhões –, chamados por ele de “jabutis tributários”. Ele quer acabar com distorções e fechar brechas que levam as empresas a pagar menos impostos – como abater do imposto incentivos do ICMS concedidos por Estados.

Durante a entrevista, realizada no escritório do Ministério da Fazenda em São Paulo, o ministro falou sobre o mal-estar no mercado com a entrega do texto final do arcabouço fiscal ao Congresso sem a responsabilização do presidente, caso não cumpra as metas.

Haddad diz que o PT – mesmo com críticas à nova regra – vai votar a favor do texto após o comando de Lula. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Como o sr. responde à crítica de que a versão do arcabouço enviada ao Congresso perdeu força?

Nós passamos do tempo de criminalizar uma regra fiscal. Não tem precedente em outros países. O enforcement (a ideia de fazer cumprir) que precisa é aquele que estamos propondo na regra: ir limitando a capacidade do Estado se os resultados não forem correspondendo às expectativas estabelecidas pelo próprio governo. Funciona muito parecido com o que é o BC, que é a autoridade monetária.

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O sr. se refere ao cumprimento do sistema de metas de inflação?

Existe a autoridade fiscal (responsável pela sustentabilidade das contas públicas) e a monetária (que fica com o controle da inflação com instrumentos como a taxa básica de juros). Não se criminaliza o presidente do BC porque ele não cumpriu a meta de inflação, mesmo fora da banda (intervalo para o cumprimento da meta). De certa maneira, passa-se a ver o problema de uma forma mais moderna, que é reconhecer que não existem duas políticas econômicas, uma fiscal e outra monetária. O BC não é um espectador do que acontece no sistema econômico. Ele é parte, inclusive, da formação de expectativas – o que nem sempre o BC se vê como. Mesmo quando ele decide sentar na arquibancada e assistir ao jogo de fora, ele está formando expectativa ao tomar essa decisão. E, quando ele entra em campo, está formando expectativa também. É impossível dissociar a política fiscal da monetária. Eu creio que as próprias atas do Copom têm deixado claro que o Ministério da Fazenda está perseguindo a meta de equilibrar as contas de uma maneira nova.

Que maneira é essa?

A novidade dessa gestão é que o equilíbrio das contas vem com o fim das regalias a quem não precisa delas, e não com o corte de saúde, educação e salário mínimo – como vem acontecendo de sete anos para cá.

O sr. está falando de várias medidas para aumentar a arrecadação nesse sentido...

No sentido de recompor a base. Eu insisto que é uma recomposição da base fiscal. Não estamos levando em conta receitas extraordinárias. É algo que vai todo ano acontecer. Com a reforma tributária, que vai acabar com a festa de lobbies no Congresso Nacional, com os velhos e novos jabutis, vamos consolidar uma base tributária estável para o Estado. Você vai ver como isso vai garantir uma condição de sustentabilidade. São R$ quase 600 bilhões de renúncia fiscal. Estamos falando de rever um quarto das renúncias.


O Banco Central não é um espectador do que acontece no sistema econômico

Outros governos já tentaram...

Ah, mas é que chegou no limite. Chegou no limite social, estamos tirando o pão da mesa do trabalhador para engordar o lucro de empresas que estão tendo lucro. Mas essa agenda, muitos governos e ministros falaram e nunca de fato foi enfrentada. Não creio que ela foi abraçada como está sendo agora. Eu despacho com relator de MP, de projeto de lei, ministro do STJ, ministro do STF, despacho todo o dia. Eu estou negociando pessoalmente.

E por que o sr. acredita que agora será diferente?

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Se a imprensa trouxer para a luz do dia – e vocês continuarem trazendo – que nós, ao invés de matar a fome, de atender as pessoas no posto de saúde, reduzir a fila do SUS, estamos aprovando um benefício fiscal para quem não precisa, se isso estiver escancarado aos olhos de todo mundo, como eu pretendo. Estamos dialogando com a CGU (Controladoria Geral da União), que temos que explicitar os benefícios fiscais CNPJ por CNPJ.

Apesar de cobrança da sociedade, a Receita nunca fez isso por alegar questões jurídicas.

Nós queremos enfrentar. Os liberais brasileiros neste momento deveriam ser os primeiros a defender a transparência: ‘olha explicitem os benefícios fiscais , CNPJ por CNPJ, empresa por empresa’. O chamado gasto tributário no Brasil está chegando a R$ 600 bilhões. Estamos pagando R$ 700 bilhões de juros porque estamos abrindo mão, renunciando R$ 600 bilhões, que deveriam ser pagos. Vamos supor que, de legítimo desses R$ 600 bilhões – Santas Casas, entidades beneficentes, Prouni (programa de financiamento estudantil) –, isso tudo chega a quanto? A R$ 200 bilhões, R$ 300 bilhões. Ainda é o dobro do que nós precisamos para fechar as contas.

O comando da Receita sempre foi reticente a abrir essas dados. Por quê?

Eu acredito que não se trata de sigilo fiscal. O meu comando da Receita não acha que seja.

Na lista dos gastos tributários, há políticas com renúncias muito elevadas e de difícil corte.

No Simples (regime simplificado de tributação para empresas de até pequeno porte) não pretendemos mexer. Mesmo assim, estamos falando de valores muito consistentes.

Mas o sr. não é o primeiro ministro da Fazenda que diz que vai acabar com privilégios. O sr. está disposto a comprar essa briga?

Eu comprei em outras circunstâncias também. Eu comprei uma briga gigantesca para fazer o Prouni, porque as instituições não pagavam impostos. As instituições de ensino privado não pagavam impostos. Foi um acordo que beneficiou 3 milhões de estudantes pobres e pretos. Eu negocio. Eu vou sentar à mesa com esses setores que estão sendo afetados por essas medidas para negociar.


Com a reforma tributária, que vai acabar com a festa de lobbies no Congresso, com os velhos e novos jabutis, vamos consolidar uma base tributária estável para o Estado

O sr. não teme ser minado no cargo por comprar essa briga?

Se eu temesse alguma coisa, eu iria assumir o ministério da Fazenda nessa conjuntura? Não tem isso. Se você acredita num projeto, tem que defendê-lo.

O sr. acredita que o site com os nomes do CNPJ pode ajudar nesse movimento da revisão dos benefícios?

Eu acredito. Se a AGU entra nisso e a gente explicitar qual é o gasto tributário e para o que ele está sendo feito, qual é a justificativa, eu creio que muitas dessas coisas saem. Falava-se muito de caixa preta do BNDES, mas ele não existia. Mas no Orçamento ela existe. A maior caixa preta do Orçamento é o gasto tributário. Falava-se muito em orçamento secreto (mecanismo revelado pelo Estadãocriado no governo Bolsonaro de distribuição de emendas parlamentares sem transparência e critérios para obter apoio político). Esse orçamento é o mais secreto de todos. Por que alguém se insurge contra o orçamento secreto, o BNDES, e quando vai falar de gasto tributário, fica todo mundo com medo de falar? Eu não vejo a turma vir a público defender essa agenda. Cadê a turma do equilíbrio macroeconômico? Não adianta esses economistas liberais falarem: ‘é muito difícil de conseguir’. Lutem pela causa. Ela é justa. Vamos ficar mais sete anos sem reajuste do salário mínimo para manter esses gastos tributários? Mais sete anos sem médico? Sem reajuste da bolsa da Capes, tirando dinheiro da educação para sustentar esse gasto? Fica para a sociedade o que se está fazendo com o dinheiro dela: ‘olha, eu não vou dar reajuste de salário mínimo porque eu vou dar uma subvenção de R$ 5 bilhões para tal empresa’.

Boa parte desses gastos tributários foi criado no governo do PT. Como o sr. responde?

Não estou mexendo com os que foram criados pelo PT. Não estou mexendo com o Simples e não estou mexendo com desoneração da folha (redução dos encargos cobrados sobre os salários dos funcionários). Nós não vamos reonerar a folha. Até porque vamos tratar disso depois da emenda constitucional.

Mas existem outros incentivos também criados nos governos petistas.

Mas aconteceram coisas que o PT não poderia prever: por exemplo, a retirada do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, que fez com que a arrecadação caísse R$ 100 bilhões. Isso não estava no horizonte. São coisas que aconteceram agora. Esse dispositivo de 2017, que abriu um rombo de R$ 88 bilhões, não estava na conta. São coisas que aconteceram depois e abriram um buraco no Orçamento e que precisam ser revistas. Agora, a reforma tributária é o grande antídoto contra futuras investidas em relação à base fiscal do Estado. A reforma tributaria estabiliza uma base fiscal. Vamos trabalhar com essa base, que dá uma sustentabilidade fiscal muito grande para o País – inclusive do ponto de vista de segurança jurídica, porque é muito mais inquestionável o IVA (Imposto sobre Valor Agregado) do que qualquer outro tributo com suas milhares de excepcionalidades, como acontece hoje.

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O sr. depende do Congresso, que não é “amigo” dessa pauta.

Tenho me surpreendido positivamente com o Congresso. Eles estão muito sensíveis. O estrago foi muito grande. Por incrível que pareça, o teto de gastos (regra que atrela desde 2017 o crescimento das despesas à inflação) aumentou o gasto tributário. O teto ampliou o gasto primário.

Por quê?

A regra fiscal ficou frouxa num tal nível que a única política que era possível fazer era abrir mão de receita. Como o gasto estava contratado, o que a política, entre aspas, podia fazer? Abrir mão de receitas – e foi o que eles fizeram. Fizeram duas coisas: no gasto, criaram os extra-tetos; e na receita, abriram mão. Eles desorganizaram totalmente as finanças públicas com a complacência, inclusive, de muitos que cobram providências em 90 dias do governo para pôr ordem em tudo.

Há alguma ação ideológica do PT contra o arcabouço fiscal? Algumas lideranças, como a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, já falaram que não querem teto para investimentos, por exemplo.

Claro que tem. Eu vi essa matéria. O Lula teve que inventar prévias dentro do PT, entendeu? Não vai ter unanimidade no PT, o que quer que seja.

Mas o PT vai votar a favor?

Ah, vai. Não existe isso. O governo é governo. Tem sua base e vai dar o comando para a base. Ali, todo mundo é adulto.

Mas o partido pode mudar o projeto?

Não tem clima para mudar. Foram muito negociados esses parâmetros, foi muito conversado. Eu ouvi muita gente. Eu não podia revelar, mas eu podia ouvir.

Como o sr. vai enfrentar a mudança na tributação diferenciada que os fundos exclusivos dos super ricos têm hoje?

Vou enfrentar da seguinte maneira, eu vou sempre separar o estoque do fluxo. Eu penso que, metodologicamente, faz sentido fazer isso. Vou falar: ‘daqui para frente, vamos fazer o que o mundo inteiro faz e discutir o para trás numa negociação transparente com a sociedade’. Daqui para frente, rico e pobre, todo mundo paga igual. Não precisa ser rico para pagar Imposto de Renda. Aqui no Brasil, precisa ser rico para não pagar Imposto de Renda. Sendo rico é que você adquire o direito de não pagar Imposto de Renda. É uma coisa impressionante. Vamos, daqui para frente, arrumar. E para trás, o estoque? Vamos pensar numa alíquota? Aí, é uma receita extraordinária.

O sr. tem ideia da alíquota?

Não tenho ideia, porque não abri essa negociação. Mas quando eu abrir, ela pode ser uma receita extraordinária. Não vou contar com ela para sempre. Tributaristas avaliam que o governo pode arrecadar muitos bilhões de reais com essa medida, muito além dos R$ 10 bilhões que o governo previu lá atrás.

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O sr. tem noção do valor?

Eu já vi conta. Mas tem gente que está confundindo essa medida com offshore (medidas para evitar triangulação). Eu acredito que é um volume significativo, sobretudo se contar o estoque.

No caso dos incentivos dos benefícios ao setor de refrigerantes na Zona Franca de Manaus, o sr. também vai mexer?

Já fui apresentado ao problema. Olha, nós não temos na Fazenda tabu em abrir contas do orçamento fiscal nebuloso. Queremos abrir. A caixa preta do gasto fiscal é a maior da história.

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