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Comportamento Adolescente e Educação

Infância roubada: em frente às telas, crianças brincam cada vez menos

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Por Carolina Delboni

As razões são diversas, assim como a necessidade e a dinâmica de cada família, mas é fato que crianças e adolescentes têm passado muito mais tempo em frente às telas e a consequência já pode ser observada na crescente inabilidade ao brincar e socializar

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"Quando eu vejo essa geração de crianças e o que elas estão consumindo, eu penso que nunca queria ter sido uma dessas crianças". A frase, de uma adolescente de 15 anos, me chama atenção. O que será que essas crianças tanto veem e fazem nas redes sociais que nem mesmo uma adolescente da mesma geração quer para si?

Ela continua: "a inspiração deles vêm do YouTube e das redes sociais e acho melhor vir de alguém de verdade". "As impressões do mundo vêm toda da internet e a gente precisa de pessoais reais para falar as coisas para a gente. Isso faz mal à saúde mental", reitera.

Sabemos que a relação telas x infância e adolescência é uma bomba relógio. Estudos e pesquisas têm sido publicados, aos montes, evidenciando o que até então era uma percepção. Os dados são claríssimos: 72% das crianças avaliadas pelo Programa de Pós-graduação em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da UFMG apresentaram sintomas de estresse, ansiedade e depressão decorrente ao uso excessivo das telas.

E ao ficarem longe dos aparelhos apresentaram o que a medicina chama de "nomofobia", medo de ficar distante do celular - medo este, até então, percebido apenas em idosos. Uma possível explicação da relação é o aumento do tempo em frente às telas no dia a dia, após a pandemia de covid-19. As telas são, cada vez mais, utilizadas para trabalho, entretenimento e estudo. Mas qual a consequência desse aumento de tempo?

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Crianças e adolescentes que passam mais tempo em dispositivos móveis do que interagindo com outras pessoas e/ou seus pares perdem oportunidades importantes de desenvolver habilidades sociais, emocionais e físicas. Segundo Gabriel Salgado, coordenador da área de Educação do Instituto Alana, o brincar e especialmente o brincar livre, que parte da iniciativa da criança e não depende de brinquedos prontos, é fundamental para a formação da subjetividade, desenvolvimento e bem-estar emocional das crianças e adultos.

Roblox é um dos jogos mais baixados por crianças e jovens. Foto: Alex, PhotoStock

"Brincar é uma condição para a expressão de vitalidade e criatividade do ser humano e possibilita sua participação ativa na sociedade. Ao brincar livre, as crianças expressam sua singularidade, demonstrando suas emoções, interesses, gestualidades e habilidades - motoras, cognitivas e sociais. É a forma da criança ser, se expressar, se afetar, criar, compreender, investigar, aprender e estar no mundo," reflete.

Salgado complementa que por meio da experiência do brincar é que a criança vai se constituindo como uma pessoa inteira, que sente, pensa e age no mundo de forma própria, singular. "O brincar proporciona o sentimento de estar vivo, de ter um lugar no mundo, de pertencer ao próprio corpo e participar da comunidade e cultura do seu entorno. Os efeitos e benefícios do brincar infantil perduram ao longo da vida," explica.

Crianças, e também adolescentes, precisam de interações sociais presenciais para aprenderem a se relacionar, a se comunicar, a conviver com a diversidade, a negociar, a ter empatia, cuidado consigo e com o outro, entender e usar expressões faciais e linguagem corporal em resposta a sinais não verbais. Nada - nada - disso vai acontecer apenas pelo virtual.

Na opinião do pediatra Daniel Becker, o excesso de permanência das crianças nas telas, e especialmente o que elas têm feito nestes aplicativos, como WhatsApp e Telegram, YouTube Shorts, TikTok e Instagram, é extremamente tóxico para a infância, justamente por serem viciantes. "Se esses aplicativos viciam os adultos, que já têm um cérebro maduro, imagine o das crianças, cuja formação ainda é imatura e que não têm qualquer capacidade de controle, ou habilidade para tomar decisões," questiona.

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Uma publicação feita pelo jornal The New York Times, em janeiro deste ano, comentou sobre a correlação entre a proliferação de algoritmos que viciam e o colapso da saúde mental dos jovens, incluindo fatores como a depressão, pensamentos suicidas e automutilação. No artigo, a colunista Michelle Goldberg menciona os impactos catastróficos em relação ao uso excessivo de Instagram e TikTok, que estimulam padrões de beleza e popularidade irreais e, que afetam o comportamento dos adolescentes, em especial as meninas.

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O especialista observa que as redes sociais não são apenas de entretenimento, nem só educativas, elas são formativas. "Se a gente pensar que uma criança passa uma hora por dia, conversando com os pais, três ou quatro horas, ouvindo os professores na escola, e umas cinco ou seis horas nas redes, elas estão ali ouvindo muitos desconhecidos no YouTube, entre manipuladores e até criminosos como pedófilos, etc., ou seja, pessoas que estão ali com uma série de interesses por trás, além de toda uma toxicidade e o incentivo ao consumismo," explica.

A utilização dos dispositivos como distração para crianças e adolescentes, definitivamente, não é uma solução para qualquer que seja a razão do tempo excessivo. Para além do retardo no desenvolvimento motor em crianças e a inabilidade social de adolescentes, existe uma outra questão que é o distanciamento entre pais e filhos.

Pois é, crianças e adolescentes têm se queixado da falta de presença dos pais. Do olhar atencioso, da escuta verdadeira, da conversa que vira diálogo, do sentar-se e brincar junto. Pais também estão viciados nas telas e isso só retroalimenta o ciclo dentro de casa. Em março, um estudo da Pew publicado no Washington Post, revela que 50% dos adolescentes entrevistados dizem que os pais têm problemas com as telas e se distraem nelas enquanto "conversam" com os próprios filhos. E por aqui não é diferente não.

Segundo o PenSe, Pesquisa Nacional de Saúde Escolar, de 2021, pais de crianças e adolescentes têm passado mais tempo ao celular quando chegam em casa e, portanto, tem dado menos atenção a seus filhos. Essa falta de atenção, troca, diálogo, cuidado, conversa, carinho e até silêncio, tem provocado um aumento de depressão nos filhos. Mas como fazer se os próprios pais também lutam contra os vícios das telas?

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Constantemente tenho visto nas escolas desenhos de crianças retratando seus finais de semana em família onde sempre existe uma pessoa com um aparelho de celular em mãos. É comum também textos de crianças reclamando da falta de atenção dos pais enquanto elas brincavam ou queriam contar algo e eles estavam olhando a tela.

"Meu pai me levou no karatê, mas toda vez que eu olhava para ele, ele estava olhando o celular. Depois da aula, falei pra ele que fiquei triste, mas ele disse que quando eu não estava olhando, ele me viu fazer aula. Eu sei que é mentira".

Esse é o relato de um menino de 7 anos durante uma atividade de escrita na escola. Outra menina, também de 7 anos, escreve que ficou chateada com a mãe que estava no celular quando tropeçou nela que caiu no chão e se machucou. "Eu queria que ela tivesse me pedido desculpas, mas ela não percebeu".

Tem mais: "eu tava almoçando no meu aniversário e minha mãe me deu um diário de presente. Eu fiquei muito feliz, mas meu pai não viu porque ele tava no celular". Temos uma geração de pais viciada em telas se debatendo na busca de mecanismos e recursos para que seus filhos passem menos tempo na frente das mesmas telas. Como?

Deixadas em frente às telas, crianças brincam cada vez menos. Deixadas em frente às telas, adolescentes socializam cada vez menos. As consequências? Aumento da depressão e da ansiedade. O que fazer? Propiciar espaços e momentos de brincadeira, experiência e vivência. Trocar o tempo de tela pela sua presença e a presença de pares.

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Como? Com esforço conjunto entre escola, família, governos, empresas e sociedade. "Precisamos ter cada vez mais políticas públicas que apoiem as famílias a levarem suas crianças para brincar em praças e bem-cuidadas, poliesportivas, vilas olímpicas com atividades recreativas e gratuitas para crianças, lugares arborizados, bem iluminados, acessíveis e com atividades diversas, para que elas não fiquem jogadas no sofá e no celular," diz o pediatra Daniel Becker. Eu acrescento aqui que o mesmo vale aos adolescentes. Quais espaços públicos a cidade propicia a eles? Nenhum.

Tem uma parte enorme desse esforço todo em tirar crianças e adolescentes das telas que cabe a governos e às próprias empresas donas de tais recursos, mas tem outra que, sim, é nossa responsabilidade. Experimentem se sentar a mesa sem o seu celular na mão. Experimentem o silêncio entre vocês até que surja uma pequena conversa. Experimentem aceitar o convite para uma brincadeira com seu filho. Experimentem as relações com crianças e adolescentes. Elas valem a pena. Elas valem muito a pena.

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