As expectativas brasileiras durante a noite de Oscar neste domingo, 2, eram altas. Seja em frente à televisão, nas redes sociais ou nos bloquinhos de carnaval, todos aguardavam os resultados das categorias em que Ainda Estou Aqui estava concorrendo. A vitória de Melhor Filme Internacional foi comemorada como um gol em uma Copa do Mundo, mas ainda havia o prêmio de Melhor Atriz.
Fernanda Torres não era a favorita, mas todos sabiam que havia uma chance de vitória. A Academia, no entanto, optou por premiar Mikey Madison, protagonista de Anora. O resultado desagradou os brasileiros e, em poucos minutos, a página oficial do Oscar no Instagram foi invadida por piadas, comentários raivosos e demonstrações de insatisfação. Maior do que as expectativas brasileiras, somente a frustração e a raiva nacional.
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Ao longo da noite, as publicações da Academia mantinham uma média de mil comentários por postagens. A exceção, antes do resultado de Melhor Atriz ser divulgado, era uma foto de Fernanda Torres, que alcançou 118 mil respostas em menos de 14 horas. Poucos minutos após a vitória de Mikey Madison, no entanto, as postagens estavam recheadas de comentários.
A primeira vítima foi uma postagem com Andrew Garfield, postada alguns minutos antes do prêmio de Melhor Atriz ser anunciado. Ao todo, 56 mil comentários questionavam a vitória da protagonista de Anora. “Roubaram a Fernanda!“, escreveu um usuário. ”Mexeram com o País errado”, escreveu outro. “O Oscar está prestes a descobrir o poder do brasileiro”, comentou o comediante francês Paul Cabannes. “Roubaram a mãe e roubaram a filha”, protestou outra usuária.

Entre as reclamações, havia aqueles que brincavam com a situação. Enquanto alguns usuários pediam por um “Oscar auditável” e outros falavam que a decisão deveria ser revista pelo VAR, brasileiros combinavam entre si de fingir que Fernanda Torres havia vencido o Oscar de Melhor Atriz, a despeito da decisão da Academia.
O Oscar até tentou se proteger. Após a vitória de Mikey Madison, o perfil do Instagram da Academia limitou o alcance das próprias postagens, disponibilizando seu conteúdo apenas para quem estivesse em solo norte-americano. O Oscar não justificou o ocorrido, mas parece pouco provável que não tenha relação com a invasão brasileira.
A premiação, no entanto, abriu o alcance da postagem em que anunciou Anora como o vencedor de Melhor Filme. Os brasileiros, então, atacaram — 219 mil comentários em menos de 11 horas. Na publicação, é praticamente impossível encontrar uma fala que não seja escrita em português. Entre famosos, influenciadores e até mesmo marcas brasileiras, todos fizeram questão de demonstrar seu descontentamento com a decisão da Academia.
Esse tipo de comportamento por parte de fãs brasileiros não é novidade. No final de janeiro deste ano, o perfil do Instagram do jornal francês Le Monde teve de apagar mais de 21 mil comentários raivosos. O motivo? Uma crítica negativa sobre Ainda Estou Aqui foi publicada no periódico europeu. Afinal, por que os brasileiros são tão raivosos na internet? O Estadão conversou com especialistas em cultura de fãs, psicologia virtual e cinema para entender o fenômeno.
O que é que o brasileiro tem?
Durante a estreia brasileira de Ainda Estou Aqui, Fernanda Torres fez um apelo ao público. “O filme é maravilhoso, mas não entrem em clima de Copa do Mundo. Não tem essa de ‘vai perder’ ou ‘vai ganhar’. Já ganhou”, falou a atriz antes da exibição do longa de Walter Salles. O pedido de Fernanda, no entanto, foi prontamente negado pelos fãs nacionais.
Entre a vitória no Globo de Ouro, a indicação ao Oscar e as participações da atriz na mídia norte-americana, cada pequena movimentação de Fernanda era celebrada como um gol da seleção brasileira. Para Adriana Amaral, professora e pesquisadora nas áreas de Comportamentos Emergentes na Cultura Digital e Estudos de Consumo e fãs em Cultura Pop, isso não é surpresa.

“O trabalho do fã é ir lá, comentar, defender e promover o artista. Hoje em dia, com a internet, há um entendimento de quanto mais você comentar, mais o assunto vai viralizar e mais ele se tornará uma tendência”, explicou. Os méritos de Torres e do filme são extensos e bem documentados, mas não há como negar que o engajamento brasileiro ajudou na promoção do longa.
Em novembro de 2024, o perfil da Academia no Instagram postou uma foto de Fernanda Torres. A postagem alcançou quase de 3 milhões de likes e se tornou uma das publicações mais curtidas da história do Oscar. Letícia Navieira, diretora de elenco de Ainda Estou Aqui, afirmou ao site Gshow que um dos diretores do Oscar ficou chocado com o volume de brasileiros apoiando o longa. “O Instagram da Academia nunca mais será o mesmo depois de Fernanda Torres e do Brasil“, afirmou o executivo à Letícia.
Segundo a pesquisadora Adriana Amaral, a defesa de um ídolo por parte de fãs não é exclusiva dos brasileiros. A cultura digital nacional, no entanto, pode explicar o que nos torna tão passionais no mundo virtual. “Os brasileiros são pioneiros no uso de internet. Somos os usuários mais ativos e volumosos nas principais plataformas e temos uma lógica própria nas redes”, explica.
Para além da quantidade de brasileiros na internet, a utilização do humor em interações virtuais também explica as diferenças entre o público nacional e os demais internautas ao redor do mundo. “No Brasil, o humor é uma característica da cultural digital nacional. Nós temos esse valor da piada, do meme”, afirma Adriana. Para a pesquisadora, no entanto, se o humor anglo-saxão na internet é associado ao cyberbullying e aos trolls, o brasileiro se difere. “No Brasil, há uma cultura de tiração de sarro e de piadas que se convertem em memes e em gifs.”
Quem concorda com a afirmação é Andréa Jotta, psicóloga em namofobia e tecnologias. Para ela, o comportamento nacional na internet é bem mais “solto” do que no restante do mundo. “O brasileiro tem um jogo de cintura digital de não levar as coisas muito a sério. Ele burla a regra social da ofensa e do xingamento. Para nós, a internet é um lugar lúdico.”
Uma paixão nacional
Outra característica apontada pelas especialistas para explicar o comportamento passional dos brasileiros na internet está relacionada à forma com que o humor se mistura com a identidade nacional do País. “Em nossas pesquisas, percebemos como os brasileiros costumam usar produtos nacionais em seus memes — a telenovela, telejornais, reality shows, entre outros", explica a pesquisadora Adriana.
Para ela, o comportamento brasileiro no mundo digital tende a valorizar a cultura do próprio País, criando uma espécie de “defesa da identidade nacional”. “O nosso cinema sempre foi pouco valorizado. Além disso, ainda há a mágoa da derrota de Fernanda Montenegro no Oscar de 1999. Tudo isso faz com que a premiação se torne uma grande disputa.”

Já a psicóloga Andréa acredita que a lógica brasileira até permite que um brasileiro possa falar mal de outro brasileiro, mas jamais um estrangeiro. Dessa forma, qualquer crítica negativa ao longa de Walter Salles é entendido como um ataque ao Brasil. A vantagem do brasileiro é que, devido à experiência na internet, o público sabe como manipular o algorítimo das redes.
“Quando os brasileiros se juntam na internet, eles conseguem derrubar perfis, ganhar uma votação online e promover a candidatura de uma atriz. Há uma potencialização do gosto de ser brasileiro. A pessoa entende que, ao fazer parte da massa, consegue alterar algo no mundo. É uma sensação de poder. Para um País como o nosso, acaba sendo um lugar de vitória”, afirma a psicóloga.
“Na internet, participar da tendência do momento é essencial”, diz Adriana. Assim, quando Fernanda Torres perdeu o Oscar para Mikey Madison, os brasileiros se reuniram no perfil da Academia já cientes do que aconteceria. Seja para observar ou comentar, todos queriam participar do evento. “É uma questão da ordem dos sentimentos, seja ódio ou amor. A reação da audiência é muito rápida. Nesse contexto, as emoções acabam escoando de uma forma mais rápida. Acaba se tornando uma válvula de escape”, explica a pesquisadora.
“O comportamento de manada, mesmo sendo ruim, é justificado”, explica a psicóloga Andréa. “Uma pessoa comum não xingaria em uma postagem, mas ela vê as ofensas sendo reforçadas inúmeras vezes. Com isso, a pessoa se permite afrouxar a própria autocensura. Afinal, todo mundo está fazendo. E, se algo der errado, a pessoa pode justificar que estava brincando. No final, as pessoas se divertem e ainda defendem os seus.”
Qual é o limite?
Andréa Jotta define as ações passionais dos brasileiros como “comportamento de manada”. “A raiva faz parte da gente. O ser humano não gosta de ser contrariado e costuma elencar seus inimigos”, relembra. Para ela, o ambiente virtual faz com que o comportamento digital não siga as mesmas regras morais e éticas do mundo físico.
“Quando você prescinde do espaço físico, você traz para dentro da virtualidade os comportamentos mais agressivos do ser humano.” A internet, então, se torna um lugar onde os internautas descontam suas raivas. “Eu encontro uma manada, me enfio nela e e descarrego o verbo. É compensatório e quase não há consequência.” A psicóloga entende que o comportamento de manada acaba por inocentar todos que participam dele.
“Quando você mata alguém em um linchamento, ninguém sabe quem deu o golpe fatal. Os comentários virtuais seguem a mesma lógica. Você consegue se inocentar daquela ação com maior facilidade”, explica. Apesar disso, Andréa entende que as postagens brasileiras são, em sua vasta maioria, focadas em piadas e chistes e não devem ser levadas tão a sério.
“Como todo caso de bullying, os limites são complementares. No virtual, você não sabe o quanto você está magoando o outro. Você não tem essa medida”, pontua. “As pessoas, no entanto, têm noção. Quando você xinga alguém, você sabe que está errado. Porém, os brasileiros fazem em tom de brincadeira. A internet, no entanto, não tem tom. O tom é sempre o de quem escuta.”
Para a psicóloga, a internet admite um limite moral mais amplo. Ela, entretanto, faz um alerta. “Quando você xinga o outro, saiba que isso reflete algo interno sobre você. Algo em você está raivoso, por isso você está xingando.”
Um feito único na história do Oscar
A campanha de Ainda Estou Aqui no Oscar foi diferente de tudo o que a Academia já viu em quase um século de existência da premiação. Quem garante isso é Waldemar Dalenogare, professor e pesquisador, crítico de cinema e membro da Critics Choice Association. De acordo com ele, muito disso se deve ao engajamento dos brasileiros.
Antes da premiação, era comum ver publicações norte-americanas especializadas em cinema veiculando a foto de Fernanda Torres em notas e reportagens. Ao abrir as matérias, no entanto, nem sempre Ainda Estou Aqui era mencionado no texto. “As revistas norte-americanas entenderam que qualquer matéria vinculada ao filme do Walter Salles vai render cliques. Só a foto da Fernanda já bastava”, explica o crítico.

“Conversando com críticos de cinema não-latinos, eles me confessaram que as análises de Ainda Estou Aqui foram as mais acessadas do ano. Os brasileiros engajam com qualquer conteúdo sobre o longa, eles querem saber o que as pessoas estão achando do filme.” Para Dalenogare, o grande trunfo da torcida brasileira foi gerar uma discussão que não se limitou ao espaço virtual. “Existe uma força das redes sociais que valoriza e expõe o filme para o mundo.”
O crítico entende que os votantes da Academia não costumam ser influenciados pelos discursos das redes sociais, mas sim por publicações como a Variety, a Vanity Fair, o Hollywood Reporter e o Deadline. Graças à movimentação brasileira nas redes sociais — e à vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro —, o longa ganhou tração na mídia norte-americana.
Em um momento histórico onde o Oscar procura por mais audiência e engajamento, Ainda Estou Aqui e os brasileiros caíram como uma luva na mão da Academia. “Muitos estúdios contratam grandes agências de marketing para tentar gerar alguma discussão positiva sobre os filmes indicados. Mas nunca é orgânico, sempre é uma equipe tentando pautar um assunto nas redes. O principal diferencial de Ainda Estou Aqui é que não há uma equipe de publicidade fazendo memes, é algo orgânico da cultura de internet brasileira."
O crítico entende que a campanha de Ainda Estou Aqui será estudada por estrategistas de Hollywood, mas não acredita que o modelo utilizado pelo longa de Walter Salles possa ser reproduzido. “É um contexto à parte. Estamos falando de um País continental na torcida, um local com cultura de internet. Estamos falando de um excelente filme, com um grande diretor e uma atriz amada em seu País”, pontua. “O Brasil sempre envia os seus candidatos para o Oscar, por que não houve essa torcida em anos anteriores? As coisas foram diferentes este ano.”