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Estudo feito em Itajaí tem limitações e é insuficiente para comprovar eficácia da ivermectina contra covid-19

Metodologia apresenta fragilidades, e resultados estão em contradição com os de pesquisas mais sólidas

Por Isabel Linck
Atualização:

Repercute nas redes sociais um estudo que afirma que o uso regular de ivermectina como prevenção contra covid-19 levou a uma redução de 100% de hospitalização e de 92% na taxa de mortalidade pela doença. A pesquisa em questão - uma análise de dados, e não um ensaio clínico randomizado cego - foi divulgada no dia 31 de agosto, na publicação médica Cureus. Na avaliação de especialistas consultados pelo Estadão Verifica, a metodologia utilizada no estudo não permite a conclusão de que a ivermectina, um vermífugo, é eficaz contra o coronavírus. Outros estudos, com metodologia mais sólida, já mostraram o contrário, e a Organização Mundial de Saúde (OMS) não recomenda o uso do medicamento em qualquer etapa da doença.

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Um dos autores do estudo já foi alvo de operação da Polícia Federal e teve um artigo retratado (retirado da publicação) após questionamentos de especialistas sobre a confiabilidade dos dados de pesquisa sobre a alegada eficácia de outra droga contra covid, a proxalutamida.

O estudo sobre a ivermectina se propôs a avaliar se o uso regular teria impacto no nível de proteção contra covid-19, por meio de análise da dose-resposta - relação entre a dose da medicação e a maneira como o corpo responde. Para isso, a pesquisa comparou dados de moradores da cidade de Itajaí (SC), a partir de um programa da cidade em que a ivermectina foi oferecida como opção aos pacientes durante as consultas médicas do Sistema Único de Saúde (SUS) entre 7 de julho e 2 de dezembro de 2020.

 

Foram analisados os prontuários de 88.012 indivíduos, sendo 8.325 pessoas que usavam regularmente o medicamento, 33.971 que o usavam de forma irregular e 45.716 que não faziam uso. O artigo define que o uso de forma regular refere-se a pacientes que receberam 180 miligramas de ivermectina ao longo de 150 dias, enquanto irregular limita-se a até 60 mg no mesmo período. Outros 71.548 participantes, que administraram quantidades entre 60 mg e 180 mg, foram excluídos da análise, embora o estudo não esclareça o porquê.  

Os resultados indicam que a taxa de infecção de usuários regulares foi 49% menor do que a de não usuários, e 25% menor do que a de usuários irregulares. Para estes, por sua vez, a taxa de infecção teria sido 32% menor do entre não usuários. Já a mortalidade de usuários regulares teria sido 92% menor do que em não usuários e 84% menor do que em usuários irregulares.

Na avaliação de especialistas, porém, a metodologia utilizada apresenta fragilidades. Pesquisas observacionais, como é o caso, costumam ser feitas de forma primária, ou seja, para apontar indícios para a realização de novas pesquisas, não sendo consideradas suficientes para apontar conclusões científicas. "Este é o tipo de artigo que poderia ser interessante se nunca tivéssemos ouvido falar de ivermectina para covid-19 antes, mas, como já temos dezenas de estudos randomizados sobre esse tópico, mesmo se não fosse malfeito seria um pouco inútil", escreveu em seu Twitter o epidemiologista e divulgador científico

">Gideon Meyerowitz-Katz. Para ele, o estudo é "completamente imprestável como evidência neste momento da pandemia". 

Quando o objetivo é avaliar a eficácia de um tratamento, a forma de estudo ideal são os ensaios clínicos randomizados cegos e controlados, de acordo com a biomédica e coordenadora da Rede Análise Mellanie Fontes-Dutra. "São estudos cujos desenhos metodológicos, quando bem adequados e com rigor técnico, são capazes de demonstrar se a droga em questão tem um efeito benéfico ou não na população avaliada", destacou a pesquisadora.

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Em estudos clínicos randomizados controlados, o tratamento testado é distribuído entre os grupos de participantes de forma aleatória, sem escolha prévia. Por exemplo, um grupo pode receber placebo e o outro, tratamento ativo. A exposição dos participantes ao tratamento é controlada pelos pesquisadores. Nesse tipo de pesquisa, costuma-se usar o que se chama de cegamento, em que os envolvidos não sabem  quem recebeu determinada intervenção. No caso do estudo de uma medicação, não se sabe quem recebeu o medicamento ativo e quem recebeu placebo. Esse cegamento pode envolver somente os participantes, participantes e pesquisadores ou, ainda, até outras partes envolvidas, como quem administra a medicação ou quem analisa os resultados, por exemplo. Essa metodologia costuma ser utilizada para que não haja risco de intervenção nos  resultados.  

Pacientes não tiveram acompanhamento

Outra vulnerabilidade do estudo é que a metodologia não esclarece se houve acompanhamento dos pacientes para verificar se eles de fato deram sequência ao uso do remédio conforme o retiravam nos centros de saúde. Também não é descrito se houve controle da administração do tratamento, estabelecida como uma dose de 0,2 mg/kg por dia, por dois dias consecutivos, a cada 15 dias, conforme relatado no artigo. "As diversas limitações metodológicas e de acompanhamento do trabalho podem gerar vieses não controlados na análise, o que pode comprometer o próprio dado obtido", afirma Mellanie.

Em janeiro de 2021, a própria prefeitura de Itajaí, em nota, afirmou que estava havendo queda na adesão dos moradores à distribuição da ivermectina pela Secretaria de Saúde. De acordo com o comunicado divulgado pelo município, 138.216 moradores retiraram a primeira dose, mas o número caiu para 93.970 pessoas que pegaram a segunda e terceira doses, e somente 8.312 pessoas retiraram a quarta e a quinta.

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Outro problema encontrado é no título da publicação, que afirma ser um estudo observacional prospectivo. Na realidade, trata-se de um estudo retrospectivo. No estudo prospectivo, os pesquisadores acompanham a exposição dos participantes ao tratamento que está sendo testado e posteriormente seguem a supervisão por um determinado período, para entender possíveis resultados. Já no retrospectivo, os pesquisadores coletam informações já existentes e tentam avaliar a exposiçãos nos diferentes grupos, além dos efeitos.

Conforme sinalizado na revista médica onde a pesquisa foi publicada, houve revisão por pares, ou seja, o estudo foi revisado por outros pesquisadores especialistas. Mas este processo se iniciou no dia 22 de agosto e foi concluído no dia 27 do mesmo mês, totalizando cinco dias. O período de revisão chama a atenção se comparado com o de outras revistas científicas tradicionais: o processo mais rápido na The New England Journal of Medicine por exemplo, uma das mais conhecidas revistas médicas do mundo, leva cerca de duas semanas.

Autores já são conhecidos pela defesa do medicamento

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Esse foi o segundo estudo utilizando o mesmo banco de dados de Itajaí. Em 2021, uma pesquisa publicada pelos mesmos autores na mesma revista afirmou haver associação entre o uso de ivermectina e diminuição de infecções, hospitalizações e mortalidade. O estudo foi checado pelo Verifica, que também o definiu como insuficiente para atestar a eficácia do antiparasitário contra a covid-19.

Ambos os artigos são assinados por nove pessoas, entre elas Lucy Kerr e Flavio Cadegiani. Kerr é médica e consultora da Vitamedic, farmacêutica que fabrica a ivermectina. Além disso, a profissional integra o grupo "Médicos Pela Vida", organização que promove o antiparasitário como tratamento para covid-19 e que semeia o ceticismo contra a vacina. Já Cadegiani foi indiciado pela CPI da Pandemia e, no dia 25 de agosto, foi alvo de uma operação da Polícia Federal que fez buscas em endereços de um hospital, um consultório e de médicos para angariar provas sobre a importação e o fornecimento irregular de proxalutamida a pacientes internados com covid-19.

O primeiro estudo do coletivo de pesquisadores precisou ser corrigido após a publicação, pois os autores tinham omitido conflitos de interesse em relação ao tema da pesquisa. "Chegou ao conhecimento da revista que vários autores não divulgaram todos os conflitos de interesse relevantes ao enviar este artigo. Como resultado, a Cureus está emitindo a seguinte errata e atualizando as divulgações de conflitos de interesse relevantes para garantir que esses conflitos de interesse sejam descritos adequadamente", diz a correção.

Ivermectina não é recomendada para tratar covid-19 nem pelo fabricante

Desde 31 de março de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a ivermectina não seja usada para tratar pacientes com covid-19, independente do nível de gravidade. A recomendação é que o medicamento só seja usado em ensaios clínicos para testar sua eficácia. Além disso, a Merck, farmacêutica responsável pelo desenvolvimento da ivermectina, informou em fevereiro de 2021, em comunicado, que não há dados que sustentem o uso do remédio contra a covid-19.

Uma pesquisa publicada no The New England Journal of Medicine, em março de 2022, concluiu que a ivermectina não se mostrou eficaz para reduzir internações por covid-19. O estudo foi feito no método duplo-cego e envolveu 1.358 pessoas infectadas pelo vírus de 12 cidades de Minas Gerais. Metade foi aleatoriamente designada para ser medicada com ivermectina e a outra metade recebeu placebo. Os resultados não demonstraram benefícios da medicação, e alguns voluntários que tomaram ivermectina chegaram a ter piores resultados quando comparados ao grupo do placebo.

Além disso, a partir da revisão de estudos baseados em ensaios clínicos sobre a eficácia da ivermectina para tratamento de covid-19, a Base de Dados de Revisões Sistemáticas Cochrane concluiu que não há evidências para apoiar o uso do vermífugo como tratamento contra a doença. De acordo com a plataforma, há evidências de baixa a alta certeza de que o medicamento não tem efeito benéfico para as pessoas infectadas. Ainda não se sabe se a ivermectina impede a morte ou o agravamento clínico e não há evidências disponíveis sobre a ivermectina para prevenir a infecção pelo SARS-CoV-2. A Cochrane é uma organização mundial sem fins lucrativos que visa produzir resumos de evidências científicas confiáveis, e a base de dados da organização produz revisões sistemáticas na área da saúde.

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O Estadão Verifica procurou os principais autores do estudo, Flávio Cadegiani e Lucy Kerr. Eles afirmaram que só responderiam às perguntas da reportagem se pudessem aprovar o texto antes da publicação. 

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