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Vacinas de mRNA não são terapia genética, nem permitem que proteína spike fique no corpo

Vídeo recicla desinformação sobre vacina da Pfizer e engana ao afirmar que substância não provoca resposta imunológica

Por Clarissa Pacheco

O que estão compartilhando: que as vacinas de RNA mensageiro (mRNA) são terapia genética e criam “usinas” de proteína spike no corpo.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Especialistas em imunologia vêm repetindo constantemente que as vacinas que utilizam a tecnologia de mRNA não são terapia genética porque não causam qualquer modificação nos genes humanos. Pelo contrário, elas são imunizantes e vêm demonstrando ser as mais seguras e eficazes contra a covid-19.

 Foto: Arte/Estadão

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No Brasil, a vacina de mRNA utilizada é fabricada pela Pfizer e, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), “cumpriu todos os requisitos técnicos para aprovação de uso no Brasil, tal qual todos os demais medicamentos e vacinas registrados no Brasil”. O órgão nega que os imunizantes sejam produto de terapia gênica e aponta que há uma correlação clara entre a introdução da vacinação contra a covid-19 e a redução dos casos graves e óbitos pela doença.

O Ministério da Saúde alertou a população para a disseminação de conteúdos inconsistentes porque são “um desserviço para o irrefutável benefício das vacinas no controle e redução de casos graves da covid-19”. A pasta assegurou que os dados obtidos até o momento atestam que os benefícios das vacinas superam os riscos da não-vacinação: “As vacinas são seguras e salvam vidas”, diz nota.

Para esta checagem, além da Anvisa, do Ministério da Saúde e de imunologistas, foi ouvida a Pfizer, consultados dados sobre estudos clínicos de fase 3 e gráficos que mostram a queda de casos graves e óbitos por covid-19 após o início da vacinação. O autor do vídeo foi procurado por e-mail, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

Saiba mais: O autor do vídeo é Caio Salvino, que possui graduação em Farmácia e Bioquímica e especialização em Análises Clínicas e Ciências Morfofisiológicas. No vídeo que viralizou, ele repete uma alegação já defendida por outras pessoas e já desmentida anteriormente – de que as vacinas de mRNA são “terapia genética”. Ele faz uma série de outros apontamentos relacionados ao imunizante.

Entre as alegações, ele afirma que não há nada no “insumo” que está sendo injetado nas pessoas que provoque uma resposta imunológica, defende que o que a substância faz é criar “bilhões de usinas” de produção de proteína spike, algo que, segundo ele, é capaz de provocar inflamações graves em qualquer parte do organismo.

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O autor do vídeo declara que a fabricante do “insumo” – a Pfizer – nunca publicou os relatórios das fases 1, 2 e 3 acumuladas e que não há, portanto, comprovação científica de segurança e eficácia das substâncias. Ao final do vídeo, ele “desafia” pessoas da área de saúde ou leigos a convencê-lo do contrário.

Confira a checagem das principais alegações do vídeo:

Não, vacinas de mRNA não são terapia genética

Diversos outros vídeos já viralizaram antes afirmando que as vacinas de mRNA são “terapia genética”, e não imunizantes – e isso já foi desmentido pelo menos duas vezes pelo Estadão Verifica e pelo Projeto Comprova, do qual o Verifica é parceiro. Em uma das ocasiões, a médica Fernanda Grassi, doutora em Imunologia e pesquisadora titular do Instituto Gonçalo Moniz da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explicou como funciona a tecnologia e deixou claro que ela não deixa danos no corpo humano, nem provoca alterações genéticas.

“Você tem uma molécula de RNA que vai dar uma informação para que a célula do nosso corpo produza a proteína spike. Essa molécula é muito instável, se degrada muito facilmente. Através de nanopartículas, conseguiram estabilizar essa molécula de RNA para que ela entre e dê as informações para que a célula produza a proteína. Depois, ela se degrada, ela não faz nada no corpo, não se incorpora, ela simplesmente se desfaz”, explicou Fernanda.

Na foto, detalhe da vacina infantil da Pfizer. FOTO: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO  

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A médica pediatra Flávia Bravo, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), acrescenta que todo o processo acontece no citoplasma, e não no núcleo da célula – ou seja, não há como haver modificação nos genes. “A vacina entra, é rapidamente degradada, e aquelas células que foram atingidas pelo antígeno vão produzir a spike e vão morrer. Elas produzem a proteína, enganam o nosso sistema – que acha que tem o vírus, mas não tem –, que produz o anticorpo. As nossas células de memória guardam essa informação”, diz.

Assim como as células atingidas, a proteína também é eliminada, explica a médica: “Eu não fico com a spike circulando no corpo, porque ela é eliminada eliminada na superfície da célula que recebeu o antígeno ou aquilo é rapidamente neutralizado pelos anticorpos. Isso é o conceito de vacinologia para todas as vacinas: você não fica com ela no seu organismo”, afirma.

A Pfizer, fabricante do imunizante, confirma o que dizem as duas especialistas e aponta que a plataforma de mRNA utiliza o RNA mensageiro baseado no código genético do coronavírus. “Esse código genético instrui o corpo a produzir uma proteína presente no vírus, estimulando o sistema imunológico da pessoa imunizada a produzir anticorpos contra o coronavírus, protegendo contra a doença. Desta forma, o RNA mensageiro leva a receita de uma proteína específica do vírus, sem ter nenhuma interferência no código genético (DNA) da pessoa imunizada”, diz a farmacêutica.

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Terapia genética existe, mas tem outro conceito

Terapia gênica – ou genética – existe e é outra coisa bem diferente do que se espalha em relação às vacinas de mRNA. Em 2022, quando a teoria de que as vacinas de mRNA eram um tipo de terapia genética, a Anvisa divulgou um comunicado afirmando que não, os imunizantes de covid-19 não são produto desse tipo de tratamento porque não se utilizam cópias de genes humanos para tratamento de doenças.

“Segundo normas vigentes na Anvisa, publicadas desde 2018, o produto de terapia gênica é um medicamento especial que contém ácido nucleico recombinante (material genético), com o objetivo de regular, reparar, substituir, adicionar ou deletar uma sequência genética e/ou modificar a expressão de um gene humano, com vistas a resultados terapêuticos. Ou seja, a terapia gênica utiliza-se de material genético humano, manipulado em laboratório, para tratamento de doenças genéticas ou relacionadas”, diz a Anvisa, em nota.

Veja todas as checagens sobre coronavírus publicadas pelo Estadão Verifica

Também segundo a Anvisa, as vacinas de mRNA “usam o código genético do vírus da covid-19 para fabricar de forma sintética o chamado RNA mensageiro (RNAm), para que nossas células produzam a proteína característica do vírus e induzam a resposta imunológica. Nesse caso, não há interação ou interferência com os genes humanos. Convém informar que os RNAm são moléculas transitórias que são rapidamente degradadas nas células após produzirem as proteínas imunizantes”, completa o órgão.

No Brasil, existem produtos de terapia gênica aprovados pela Anvisa, mas eles são muito diferentes das vacinas, têm outros objetivos e até os requisitos regulatórios usados necessários para a aprovação são distintos. Os produtos foram aprovados em 2020 para tratamento da atrofia muscular espinhal (AME) e da distrofia hereditária da retina (DHR), causadas por alterações genéticas específicas e raras.

As vacinas de mRNA oferecem proteção, diferentemente do que diz autor do vídeo

Sem apresentar provas, o autor do vídeo com mais de 25 mil visualizações apenas em seu perfil pessoal afirma que os insumos que estão sendo injetados nas pessoas não possuem nada que provoque uma resposta imunológica. Mas não é isso que os dados mostram, nem o que dizem especialistas no assunto ou órgãos oficiais.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) observa que pessoas vacinadas podem contrair covid-19, mas que “têm muito mais probabilidade de apresentar apenas sintomas leves, uma vez que a eficácia contra doenças graves e morte permanece elevada”.

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Em nota, a Anvisa apontou que “os dados das pesquisas clínicas bem como os dados da doença demonstram uma correlação clara entre a introdução da vacinação contra covid e a redução dos casos graves e óbitos provocados pela doença”.

Este gráfico da plataforma Our World in Data, por exemplo, mostra a queda no volume de mortes por covid-19 a partir do início de março de 2021, quando os primeiros vacinados começaram a completar seus esquemas vacinais, e à medida que mais pessoas iam sendo vacinadas.

Gráfico morta queda nos óbitos por covid após início da vacinação. Crédito: Our World in Data Foto: Our World in Data

A alegação de que as vacinas de mRNA não têm nada em seus compostos que provoquem uma resposta imunológica também não faz sentido, para a médica Flávia Bravo. “Essa é uma das tecnologias de vacina que vem sendo desenvolvida há décadas. O que a covid fez foi acelerar esse processo”, pontua.

“Falar que não tem resultado é uma piada, porque desde 2020 a vacina está sendo aplicada em massa, como nunca foi visto antes, e com vigilância em todos os países, com publicação de análises de eventos adversos e segurança, e tudo isso tem muito, porque a gente já tem muitos anos usando”, completa a especialista.

A Pfizer destacou que agências regulatórias pelo mundo, como a FDA (Estados Unidos), a EMA (Europa) e a própria Anvisa (Brasil) autorizaram o uso da vacina com base em avaliações robustas e independentes e de dados científicos sobre qualidade, segurança e eficácia, incluindo os dados de fase 3 do estudo clínico. “Além disso, dados de estudos de mundo real complementam as informações dos estudos clínicos e proporcionam evidência adicional de que a vacina fornece proteção eficaz contra formas graves da doença”, diz a Pfizer.

O Ministério da Saúde também defendeu a eficácia das vacinas: “A vacinação contra a covid-19 é a principal medida de saúde pública usada para reduzir hospitalizações e mortes, culminando no controle da principal emergência de saúde pública nacional e internacional”.

Artigos usados para justificar vacinação em crianças são ‘vergonhosos’?

O autor do vídeo diz que as pesquisas usadas pelo Ministério da Saúde para justificar a aplicação da vacina contra a covid-19 para crianças de 6 meses a menos de 5 anos são “vergonhosos”. Mas ele não explica a quais documentos se refere.

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O documento mais recente sobre o assunto é uma nota técnica do ministério de número 118/2023, que trata da incorporação das vacinas contra a covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação Infantil para crianças de seis meses a menores de 5 anos de idade a partir de 1º de janeiro de 2024.

A nota é assinada em conjunto pelo diretor do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Eder Gatti Fernandes, e pela secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente, Ethel Maciel – ambos epidemiologistas. São citados 23 estudos utilizados pata avaliar a imunogenicidade e efetividade da vacina em crianças (12 estudos) e a segurança das vacinas contra a covid-19 no mesmo público (11 estudos). Eles foram publicados em revistas científicas renomadas como a Nature, Lancet e New England Journal of Medicine, entre outros.

No Brasil, crianças são vacinadas contra a covid-19 desde janeiro de 2022, em regime de campanha Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Para a médica Flávia Bravo, todas as publicações são sérias e não há motivo para desconfiar dos artigos, que têm rigidez metodológica adequada e são verificados por pares, não apenas por quem os produziu. O Ministério da Saúde ressaltou que utilizou artigos sérios, revisados por pares, publicados em revistas renomadas e aceitos em diversos países.

“As Notas Técnicas são documentos elaborados por autoridades sanitárias quando há necessidade de fundamentação técnica e científica para orientar condutas profissionais e sistematizar as ações no âmbito da saúde pública em todo o país. Em relação aos documentos publicados sobre a farmacovigilância pós-comercialização de vacinas covid, são as notas técnicas que orientam a detecção, avaliação, compreensão, prevenção e comunicação de qualquer problema que possa estar relacionado à vacinação”, disse o ministério, em nota.

Nesse caso específico, a nota tratou de orientações relacionadas à vacinação de crianças de 6 meses a 5 anos contra a covid-19, embora crianças já sejam vacinadas contra a covid-19 no Brasil desde janeiro de 2022, mas em regime de campanha. A novidade é incluir a vacina no calendário nacional, tornando-a de rotina.

“Seguindo as recomendações técnicas e cumprindo a Lei nº 6.259/1975, o PNI incluiu a vacina contra a covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação a partir de 01 de janeiro de 2024. As referências científicas utilizadas para a construção da estratégia de vacinação contra a covid-19 foram extraídas de revistas científicas renomadas, com artigos revisados por pares (outros cientistas) e de alta credibilidade e aceitos em vários países”, disse o ministério.

Autor acusa farmacêutica de não ter divulgado relatórios das fases 1, 2 e 3

O autor do vídeo chega a sugerir, um um momento, que as pessoas procurem a fabricante das vacinas e peçam para ver os relatórios das fases 1, 2 e 3 acumuladas, afirmando que eles não foram publicados até hoje.

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No site da Pfizer, é possível acessar os dados sobre os estudos de fase 3 da vacina contra a covid-19 em adultos. No entanto, não é possível acessar os dados de forma detalhada, somando as três fases. Questionada, a Pfizer informou que, devido a questões de copyright, os dados podem ser disponibilizados para profissionais de saúde mediante solicitação.

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