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Como Medellín atraiu jovens e dialogou com criminosos para melhorar a segurança na terra de Escobar

Analista colombiano explica como a cidade se tornou conhecida pelo ‘milagre’ em deixar de ter a taxa mais alta de homicídios do mundo para um modelo de gestão de segurança pública

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Por Carolina Marins
Atualização:
Foto: Divulgação/Universidade de Antioquia
Entrevista comJulian Andrés Muñoz TejadaAdvogado e coordenador do grupo de estudos sobre Conflitos, Violências e Segurança Humana da Universidade de Antioquia

A cidade de Medellín, na Colômbia, se tornou um exemplo de estratégia bem sucedida de segurança pública ao reduzir suas taxas de homicídio em mais de 90% nas últimas décadas. Conhecida como o lar de Pablo Escobar, a cidade foi considerada nos anos 80 e 90 uma das mais perigosas do mundo, ocupando o topo do ranking por alguns anos. Hoje, o termo “milagre de Medellín” surge para tratar da aposta em mudanças urbanas e inclusão social de jovens vulneráveis para reduzir as estatísticas de assassinatos.

Porém, o professor Julian Andrés Muñoz Tejada, coordenador do grupo de estudos sobre Conflitos, Violências e Segurança Humana da Universidade de Antioquia, explica que o “milagre” não foi resultado apenas de construção os chamados Parques Bibliotecas, espaços urbanísticos de fomento à cultura, mas também exigiu a aceitação de que os grupos criminosos que atuavam na cidade eram, também, agentes políticos.

“São [os grupos criminosos] que definem o controle das fronteiras, definem a distribuição de determinados produtos [...] e as pessoas confiam mais neles do que nas próprias instituições do Estado. Quando reconhecemos que esses grupos cumprem funções políticas, a primeira coisa a fazer é encontrar maneiras de impedir que esses grupos continuem a definir essas questões”, afirma em entrevista ao Estadão.

O 'milagre de Medellín' contou com o investimento em melhorias urbanas, como no sistema de transportes, e promoção de Parques Bibliotecas para espaços culturais, mas não só, explica pesquisador Foto: LUIS F. SALDARRIAGA

“É preciso gerar estratégias que permitam o desmantelamento e desarticulação desses grupos, entendendo que não são estranhos aos bairros onde estão. São jovens criados lá, vivem lá e são reconhecidos nesses bairros”, completa.

As autoridades, porém, negam que tenha havido qualquer espécie de acordo com grupos criminosos, o que ficou conhecido como “Pactos do Fuzil” ou “Donbernabilidad”, um termo que brinca com a palavra “Governabilidade” e Don Berna, alcunha de Diego Murillo Bejarano, ex-paramilitar e líder da Oficina de Envigado, cartel que herdou o vazio deixado por Pablo Escobar.

O sucesso do modelo transformou a cidade em um ponto de excursão de políticos latino-americanos que tentam combater a insegurança em seus países. “Tornou-se crível que o que acontecia em Medellín, com a melhoria do transporte público e os Parques Biblioteca, havia uma possibilidade replicável de controle de certas formas de violência e, em última análise, um modelo replicável de gestão da segurança. Acho muito duvidoso estabelecer uma ligação entre esse equipamento urbano com a forma como a taxa de homicídios se comportou”, afirma o professor.

Veja trechos da entrevista:

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O termo ‘Milagre de Medellín’ ficou conhecido em revistas internacionais ao apresentar o projeto urbanístico e cultural como forma de combater a violência em uma cidade que já figurou entre as mais perigosas do mundo. O termo ‘milagre’ faz jus? E como saímos de uma taxa de homicídio 300 para cada 100 mil habitantes para menos de 15 hoje?

É necessário esclarecer várias coisas aqui. Primeiro que, sim, houve uma melhoria no aparato urbano da cidade, o que é evidente em termos de mobilidade, por exemplo. O sistema integrado de transporte público teve uma melhoria notável, o impulso na construção dos Parques Biblioteca pela administração do prefeito [Sergio] Fajardo é algo que eu considero importante destacar. O chamado urbanismo social.

O que me parece um pouco complicado é atribuir essa melhoria urbanística à dramática redução na curva de homicídios desde 2006. Porque muitas vezes, ao falar do “milagre Medellín”, deliberadamente ou não, deixa-se de lado um fenômeno de governabilidade alternativa conhecido aqui como a “Donbernabilidad”, que se refere a um controle hegemônico por parte deste personagem no mundo criminoso de Medellín e no Vale de Aburrá. Isso mais tarde seria chamado de “pactos de fuzil” e implicaria uma capacidade de ordenar o mundo criminal a partir desse controle que, enquanto Don Berna esteve no comando antes de ser extraditado em 2008, era um controle hegemônico.

Já sabemos o que acontece em 2008 quando o presidente [Álvaro] Uribe Vélez extradita Don Berna e começa uma guerra pelo controle da estrutura liderada por esse personagem, com seus dois principais tenentes, conhecidos como aliás Sebastián e aliás Valenciano, liderando a disputa por esse controle monopólico. [Nessa época] vemos novamente um aumento nos homicídios, quando a hegemonia se dissolve.

Então, eu acredito que essa ideia do “milagre” não corresponde efetivamente ao que imagino que você esteja se referindo aos anúncios feitos pela revista Time na época. Claro, a redução na cifra de homicídios é notória, especialmente a partir de 2004-2005 mais ou menos, mas não acredito que isso corresponda efetivamente a esses equipamentos urbanos aos quais normalmente são atribuídos. Deixo absolutamente claro que prefiro uma cidade com Parques Biblioteca e gosto dos investimentos feitos, mas parece muito duvidoso supor que essas bibliotecas e a expansão do sistema de transporte público tenham tido alguma incidência efetiva no comportamento dos homicídios. Acredito que são aspectos separados e não necessariamente relacionados entre si.

Ainda nessa alcunha do ‘milagre’, a cidade virou um ponto de excursão de políticos latino-americanos que avaliam as questões de segurança de seus países. Mas o que fez Medellín é um modelo replicável?

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Quando estava ocorrendo a promoção do chamado ‘modelo Medellín’, não tenho certeza se foi o prefeito do Rio que fez a pergunta ao prefeito de Medellín: ‘bem, quantos Parques Biblioteca e quantos metrocables [sistema de teleféricos] eu preciso construir para reduzir em um ponto a taxa de homicídios?’ Parece uma piada, mas por trás dessa preocupação, que entendo ser bastante genuína por parte do prefeito do Rio, acredito que há uma situação que não pode ser ignorada. De fato, tornou-se crível que o que acontecia em Medellín, com a melhoria do transporte público e os Parques Biblioteca havia uma possibilidade replicável de controle de certas formas de violência e, em última análise, um modelo replicável de gestão da segurança. Como mencionei antes, acho muito duvidoso estabelecer uma ligação entre esse aparato urbano e a construção dos Parques Biblioteca, com a forma como a taxa de homicídios se comportou, especialmente.

Se esta pergunta tivesse sido feita a você, como responderia ao prefeito do Rio?

Acredito que a gestão da segurança envolve necessariamente dois tipos de atividades. Primeiramente, atividades de natureza preventiva que seguem a linha do que a administração municipal fez aqui em Medellín. É necessário investir na cultura, apostar no movimento artístico, esportivo e na integração dos jovens. É difícil pensar em uma política de segurança preventiva se não estiver articulada a uma política de juventude que integre os jovens. Isso implica oferecer oportunidades de socialização e entrada no mercado de trabalho.

Mas, além do componente preventivo, deve haver também um componente reativo, e isso não implica, e quero ser muito enfático nisso, em realizar operações militares, mas sim fazer algo em relação aos grupos que estão de fato definindo a ordem e administrando a desordem nos bairros. Esses não são criminosos políticos, mas desempenham funções políticas. São eles que definem o controle das fronteiras, definem a distribuição de determinados produtos, definem a coexistência, definem a punição, e não apenas definem a punição, mas administram e gerenciam essa punição, e as pessoas confiam mais neles do que nas próprias instituições do Estado. Quando reconhecemos que esses grupos cumprem funções políticas, a primeira coisa a fazer é encontrar maneiras de impedir que esses grupos continuem a definir essas questões. É preciso gerar estratégias que permitam o desmantelamento e desarticulação desses grupos, entendendo que não são estranhos aos bairros onde estão. São jovens criados lá, vivem lá e são reconhecidos nesses bairros. Portanto, é fundamental abordá-los de maneira apropriada, reconhecendo a realidade local.

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Há três opções. A estratégia militar, da guerra, já foi aplicada em Medellín, deu certo? Não. Outra abordagem seria jurídica, criminalizar e prender todos esses jovens, isso resolveu de maneira efetiva o problema? Menos ainda. Sobra a política. O desafio é integrar uma abordagem preventiva que envolve cultura, esporte e emprego, articulada à gestão reativa que envolva um diálogo cultural de longo prazo. Isso não se alcança simplesmente com medidas imediatas, mas sim com um esforço cultural duradouro. Este é o desafio que deve ser enfrentado.

Se antes o ‘milagre Medellín’ era o modelo perseguido, agora o modelo de Nayib Bukele de encarceramento em massa e guerra aos grupos criminosos têm ganhado admiradores na região. Já vimos Honduras elogiando, Argentina também. Como você vê esta estratégia?

Há uma pergunta que remonta ao pensamento de Santo Agostinho: “O que diferencia a ordem legal da ordem de uma gangue de criminosos?”, “O que diferencia o que o Estado faz do que faz uma quadrilha qualquer?” Porque deve haver alguma diferenciação do ponto de vista ético. Se não houver nenhuma diferenciação do ponto de vista ético, então o que já é insuportável se torna ainda mais. Recuperando essa reflexão que se poderia rastrear no pensamento político sobre o que diferencia a ação do Estado da ação de uma quadrilha de criminosos, é que o Estado deve entender que existem limites que não pode simplesmente ignorar. Independente de como a criminalidade seja entendida como descontrolada, independentemente de uma situação de urgência no controle de certas inseguranças como homicídios, extorsões e furtos, o Estado não pode responder de qualquer maneira.

Os Estados, lembremos bem, também estão condicionados por tratados internacionais que assinaram, os quais os obrigam a tratar as pessoas com certa dignidade, independentemente de terem cometido ou possivelmente cometido crimes. O que se observa na estratégia desse senhor em El Salvador é como se os direitos humanos simplesmente não importassem, como se os direitos humanos, ao melhor estilo dos momentos de maior autoritarismo, fossem “para os bons”. No entanto, os direitos humanos são imperativos ético-políticos que obrigam o Estado ao respeito por todas as pessoas.

O que se percebe à primeira vista com essa estratégia de controle da criminalidade em El Salvador, na minha opinião, é uma violação de uma série de direitos das pessoas que atualmente estão privadas de liberdade. Presunção de inocência, devido processo legal e muitas outras expressões do devido processo parecem estar sendo desrespeitadas. É uma política eficaz a curto prazo, pois os resultados podem ser facilmente documentados, mas acredito que, em termos dos custos envolvidos e das violações de direitos, não parece estar em consonância com um respeito adequado pelos direitos das pessoas.

Centro Cultural Moravia, Medellin, Antioquia, Colombia Foto: Daniel Bustamante Camara Lucida

Independentemente da abordagem escolhida, o crime também tem sua capacidade de se reorganizar. Estamos assistindo agora às rotas de tráfico se redesenhando na América Latina. Tendo o crime esta capacidade, faz sentido manter estratégias tão focalizadas como foi Medellín?

A abordagem tem que ser efetivamente transfronteiriça. O caso do Equador nos mostra isso muito bem. O Equador, durante muito tempo, conseguiu manter-se [bem] independentemente das situações de conflito interno que a Colômbia enfrentava. Claro, havia dificuldades, indiscutivelmente havia tráfico de drogas, mas o Equador conseguiu manter a situação sob controle até certo ponto. Recentemente, ao conversar com colegas e pesquisadores equatorianos sobre temas de segurança, o que nos dizem é algo muito semelhante ao que aconteceu em Medellín e Cali na Colômbia, em geral, nos anos 90. Parece que estão experimentando um tipo de déjà vu, repetindo situações que já vivemos aqui. O controle precisa ser verdadeiramente transfronteiriço e envolver a vontade dos diferentes governos da América Latina para enfrentar esses desafios. Essa é uma das tarefas pendentes, pois, até onde pude perceber, não houve realmente essa articulação, também porque parece que a afiliação política dos governos (se são de esquerda ou de direita) tem mais peso do que a vontade efetiva de lidar com esses problemas que são comuns aos diferentes países da América Latina.

Uma coisa é falar de dados de segurança, outra coisa é ver esses dados se traduzindo em uma percepção de segurança. Apesar da queda dos homicídios, a percepção de segurança tem caído nos últimos anos. Por quê? E como fazer um se traduzir no outro?

Há uma situação que você menciona muito bem, que é a clássica diferenciação entre segurança objetiva, vinculada aos dados efetivos, nos quais você pode fazer comparações em termos da taxa de homicídios do mês passado até o mês atual, e objetivamente percebe que diminuiu. No entanto, a percepção vai por outro caminho, e a percepção está relacionada ao medo real. Gerenciar o medo é um assunto muito difícil porque envolve um componente midiático e comunicacional, que é o que as pessoas estão consumindo, não apenas nos meios de comunicação de massa, que atualmente não são a principal fonte de informação ou desinformação, mas sim nas redes sociais. Como você controla isso? Como controla se, por qualquer descuido, não saberia dizer de que tipo, um vídeo de um assalto a uma pessoa idosa atravessando a faixa de pedestres de um semáforo se torna viral? Como você controla se as pessoas começam a ver isso e continuam a ver? Então, dizem: “Bem, se estão compartilhando muito, é porque estão roubando muito”, e pode haver aí uma diferença objetiva em relação à forma como a insegurança está sendo percebida.

Aí estão desafios muito complexos relacionados a símbolos que a institucionalidade realmente precisa construir, mostrando às pessoas que se está tomando medidas efetivas para resolver seus problemas. Isso deve acontecer principalmente no plano simbólico, porque, no final das contas, a percepção de insegurança é uma questão que se move no nível do medo que as pessoas têm de serem agredidas, violentadas ou extorquidas. Então, você situa o problema no nível desse medo, dessa emoção tão poderosa. Portanto, é necessário trabalhar em termos de como gerar confiança nas pessoas, como fazê-las sentir-se mais protegidas, melhor protegidas. Isso é feito também por meio de ações simbólicas, que podem envolver não apenas as forças policiais, mas também a presença do Estado em diferentes lugares. No entanto, isso também não é tão fácil.

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E quando esse medo é utilizado justamente com fins políticos?

Existe um livro belíssimo chamado ‘El miedo. Historia de una idea política’ [O Medo. História de uma ideia política], e o que [Corey] Robin efetivamente mostra nesse livro é que este medo acaba sendo uma ferramenta de governo. Então, quando você percebe que estão instrumentalizando o medo das pessoas para governar ou tentar governar, estão brincando com uma emoção muito primária. Se estamos falando sobre o medo, como você joga para gerar confiança? Porque parece que o oposto do medo é a confiança. Como fazer com que as pessoas confiem? Não tenho uma resposta.

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