Diplomacia em ponto morto

A escala da investida do governo Trump contra o Departamento de Estado não tem precedentes

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Poucos americanos ficaram sabendo, mas, na véspera do ano-novo, seus diplomatas provavelmente evitaram muitas mortes e talvez até uma guerra na África Central. Joseph Kabila, autocrata que desde 2001 governa o Congo, recusava-se a deixar o poder, como determinava a Constituição do país. Manifestantes tinham saído às ruas de Kinshasa para protestar e o Exército de Kabila se preparava para enfrentá-los.

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Recorrendo a habilidades diplomáticas, bem como ao “poder de convencimento” de que podem se valer os representantes de uma superpotência norteada por valores, Tom Perriello, então enviado especial do Departamento de Estado para a região dos Grandes Lagos Africanos, e John Kerry, então secretário de Estado, ajudaram a convencer Kabila a recuar. Com mediação do Vaticano, fechou-se um acordo em que Kabila se comprometeu a compartilhar o poder com a oposição e deixar o cargo antes do fim deste ano. Caso fosse respeitado, o acordo garantiria a primeira transição pacífica da história do Congo. Mas é pouco provável que isso aconteça.

Três semanas depois, Donald Trump assumiu a presidência dos EUA e os cerca de 100 indivíduos que ocupavam cargos de confiança no Departamento de Estado, entre os quais Kerry e Perriello, deixaram o governo. Nos EUA, quando há uma troca de governo, isso é normal. O anormal é que os mais importantes funcionários de carreira do órgão também sejam removidos de seus postos, como aconteceu. Até agora, só Kerry foi substituído, dando lugar a Rex Tillerson, um executivo conceituado que até o ano passado era presidente da Exxon Mobil. No comando da política externa americana, Tillerson vem mantendo, não obstante suas indiscutíveis qualidades, a aversão ao escrutínio público típica dos empresários do setor de petróleo. Parece mais preocupado com a espinhosa tarefa de cortar 31% do orçamento do Departamento de Estado, que Trump deve encaminhar em breve ao Congresso.

Os cargos vagos - com efeito, quase toda a estrutura decisória do órgão, composta de subsecretários, secretários-assistentes e embaixadores - estão sendo ocupados interinamente por servidores de médio escalão, que não têm autoridade nem suficiente conhecimento dos planos do governo para agir. A diplomacia americana foi colocada em ponto morto.

Para os aliados dos EUA, as consequências de tamanha negligência são menos evidentes. A atual diplomacia americana se caracteriza mais pela passividade do que pela incompetência. Apesar disso, o pouco-caso com que o governo Trump trata o Departamento de Estado traz prejuízos, como acontece no caso do Congo: depois que os americanos deixaram de incomodá-lo, Kabila sabotou o acordo de compartilhamento de poder, fazendo renascer a perspectiva de violência.

Por outro lado, se a escala da investida de Trump contra o Departamento de Estado não tem precedentes, o fato é que ela é consistente com uma tendência em vigor há décadas. Na formulação da política externa americana, o órgão foi suplantado em importância pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN). Os gastos com a diplomacia sofreram redução drástica: em 1950, quando os diplomatas americanos supervisionavam a reconstrução da Europa, o orçamento do Departamento de Estado correspondia a metade dos gastos do Pentágono; agora, abocanhando menos de 1% do orçamento federal, equivale a 10%. Em parte, isso resulta da ação de forças estruturais, entre as quais se incluem a globalização e a tecnologia de comunicações. A maioria das agências governamentais agora se comunica diretamente com seus homólogos no estrangeiro, e não, como no passado, por meio de diplomatas. “A política externa passou a envolver o conjunto do aparelho governamental”, diz Jeremy Shapiro, que já foi assessor do órgão e hoje atua no Conselho Europeu de Relações Exteriores. O resultado é uma diplomacia diminuída e exposta a ataques políticos - mas que ainda realiza, como testemunha o triunfo momentâneo de Perriello no Congo, façanhas importantes, de que nenhuma outra agência governamental é capaz.

Críticos republicanos do Departamento de Estado acusam o órgão de se preocupar mais em promover admiráveis interesses estrangeiros do que em defender os interesses dos EUA. “O maior problema dos diplomatas americanos é que eles acabam se identificando com os países em que servem”, diz um ex-embaixador. A avaliação, embora válida em alguns casos, desconsidera a natureza morosa e profundamente política de grande parte do trabalho realizado pelo Departamento de Estado. Na diplomacia, poucas vezes é produtivo colocar inequivocamente a “América em primeiro lugar”. Agências mais “focadas”, como CIA e Pentágono, podem até ter uma atuação mais facilmente compreensível, mas também cometem erros e com frequência se deixam levar por uma visão limitada ao curto prazo. É pouco provável que houvessem conseguido impedir Kabila de promover um massacre.

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Além do mais, os esforços diplomáticos também contribuem para garantir a segurança dos EUA. Como James Mattis, atual secretário de Defesa, disse certa vez aos congressistas: “Se os senhores não destinarem todos os recursos financeiros de que o Departamento de Estado precisa, vou ter que comprar mais munição”.

O ideal seria preservar as características eminentemente positivas do órgão e, ao mesmo tempo, ajustá-lo a suas novas circunstâncias. Mas não são reformas institucionais sensatas que a Casa Branca parece ter em mente. Trump precisa de recursos para financiar o prometido aumento de US$ 54 bilhões nos gastos de defesa, e vê o Departamento de Estado como um dos poucos lugares onde pode obtê-los. As consequências do assalto não parecem estar sendo levadas em consideração. “Este é um orçamento que prioriza a força militar, não o soft power”, foi o máximo que Mick Mulvaney, diretor do Gabinete de Gestão e Orçamento, conseguiu dizer. É o tipo de entendimento curto contra o qual advertiu Mattis. Tillerson, que não parece ter oferecido resistência aos cortes, tampouco explicou com clareza como pretende implementá-los. Documento obtido pela revista Foreign Policy menciona uma redução de um terço na ajuda a países em desenvolvimento. É pouco provável que o Congresso aprove medidas tão drásticas. De qualquer forma, o corte nos recursos destinados à diplomacia americana parece inevitável, levando adiante a deterioração de uma tradição formidável, que arregimentou o apoio da França durante a Guerra de Independência e ajudou a construir o sistema internacional após a 2.ª Guerra.

Uma das melhores ideias do governo Trump foi tirar poder do CSN, a fim de impulsionar o processo entre as agências de formulação de políticas e, com isso, fortalecê-las. No caso do Departamento de Defesa, isso parece estar acontecendo. Mattis tem sido elogiado por descentralizar o processo de tomada de decisões. Mas o Departamento de Estado, sem dispor de praticamente ninguém capaz de representá-lo com autoridade nesse processo, e sem ter muita clareza sobre a direção que a Casa Branca pretende imprimir à política externa, está cedendo ainda mais espaço ao CSN. É uma falta de cuidado espantosa com uma instituição de que os EUA necessitam, sejam quais forem seus pontos fracos.

© 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. TRADUZIDO POR ALEXANDRE HUBNER, PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM