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Fui a Gaza como refém. Nunca mais voltarei; leia o depoimento de idosa sequestrada pelo Hamas

O guardião do meu cativeiro era um civil. Ele me disse ‘se não fosse pelo Hamas, não teria tido dinheiro nem oportunidades’. Mas a amarga ironia é que, por causa do Hamas, nós dois agora não temos nada

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Por Ruti Munder*

THE NEW YORK TIMES - A primeira vez que fui a Faixa de Gaza foi em 1967. Com 22 anos de idade e morando no pequeno kibutz agrícola de Nir Oz, em Israel, a dois quilômetros a leste da fronteira israelense com o território, eu acordava cedo para cuidar dos campos, colher maçãs no pomar e trabalhar na creche.

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Até a Guerra Árabe-Israelense daquele ano, Gaza era um lugar com o qual nos preocupávamos, mas não sabíamos muito sobre os próprios habitantes de Gaza. A área, então sob o controle do Egito, ficava do outro lado do horizonte e representava a ameaça de infiltrações de fedayeen [guerrilheiros] e de uma temida invasão dos exércitos árabes. Ela lançava uma sombra sobre Nir Oz e os outros grupos agrícolas ao nosso redor, parte de uma região conhecida como o Envelope de Gaza.

Naquele verão, a vitória de Israel sobre os exércitos do Egito, da Jordânia e da Síria colocou Gaza sob o controle de Israel, e as sombras da guerra se dissiparam de Nir Oz. Pouco tempo depois, eu me vi na traseira de um trator com um grupo de amigos do kibutz, atravessando a fronteira invisível até a bela praia de Khan Younis. No caminho de volta, fizemos um desvio por Rafah e compramos pitas para a lenta viagem de volta.

Buracos de bala deixados pelos terroristas do Hamas no ataque ao kibutz Nir Oz, perto da fronteira Israel-Gaza, em foto do dia 21 de novembro de 2023 Foto: Maya Alleruzzo / AP Photo

Tenho boas lembranças daquele dia e, nos anos seguintes, minhas interações com os habitantes de Gaza aumentaram. Conheci empresários de Gaza que faziam negócios com meu cunhado na cidade de Be’er Sheva e que vieram como convidados à minha casa em Nir Oz. Eu me sentava ao lado deles no trânsito nas viagens de fim de semana para Tel Aviv. Por um tempo, era possível imaginar que estávamos destinados a viver juntos.

No entanto, esperávamos que Gaza acabasse voltando para os egípcios em troca de paz e normalização, mas esperávamos que os laços com os habitantes de Gaza permanecessem.

Depois que os Acordos de Camp David deixaram Israel no controle de Gaza e o fracasso de Oslo levou ao derramamento de sangue da segunda intifada, nossas esperanças de coexistência foram extintas.

Quando Israel se retirou unilateralmente de Gaza em 2005 e fechou a fronteira, voltamos a ser estranhos. Eu podia sentir as velhas sombras retornando lentamente a Nir Oz quando o Hamas assumiu o poder.

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Em 7 de outubro, homens armados do Hamas, mascarados, invadiram o abrigo antibombas dentro de minha casa e me sequestraram, minha filha Keren e meu neto Ohad. Meu marido, Abraham, foi nocauteado ao tentar impedir que os homens gritando entrassem na sala de segurança e foi levado separadamente de nós. Ele ainda está em cativeiro, e sua condição é desconhecida. O Hamas também matou meu filho, Roy, quando ele tentava defender Nir Oz.

Mais tarde naquele dia, eu estava de volta a Khan Younis, 56 anos depois de minha viagem à praia.

Nos 49 dias seguintes, passei a maior parte do tempo trancada em um pequeno quarto no segundo andar de um hospital. Meu carcereiro, que atendia pelo nome de Mohammad, se dizia um soldado do Hamas, mas não parecia um soldado. Eu estava sendo vigiada por um homem em roupas civis e mantida contra a minha vontade em um prédio civil.

Foto fornecida pelo exército israelense mostra o refém Ohad Munder, de 9 anos, dentro de um helicóptero militar israelense logo após depois de chegar a Israel em 24 de novembro de 2023. Ele é neto de Ruti Munder, autora deste depoimento  Foto: Forças de Defesa de Israel / via AP

O hebraico quebrado de Mohammad contrastava com o hebraico fluente que os empresários de Gaza falavam em minha casa. Imagino que ele possa ter sido um de seus filhos e que tenha aprendido o idioma com eles. Anseio por um mundo em que ele teria conseguido construir seu próprio negócio, viver com dignidade e falar fluentemente com seus vizinhos israelenses com respeito mútuo. Nesse mundo, não acredito que ele teria se juntado a um grupo terrorista que o enviou para cuidar de uma avó sequestrada que não lhe desejava mal algum.

Mohammad me disse que, se não fosse pelo Hamas, ele não teria tido dinheiro nem oportunidades. Não foi bem um pedido de desculpas, foi mais uma explicação, mas a amarga ironia é que, por causa do Hamas, nós dois agora não temos nada.

Depois de 50 dias como refém, saí de Khan Younis em um veículo da Cruz Vermelha, libertada junto com minha filha e meu neto. Eu estava com os olhos vendados no caminho, mas agora podia finalmente ver a cidade - por causa da guerra, uma casca do lugar que eu lembrava do meu dia na praia.

Extremistas islâmicos em funeral na Cisjordânia, onde os confrontos se intensificam em meio à guerra na Faixa de Gaza Foto: Raneen Sawafta / Reuters

A Nir Oz para a qual retornei também é uma ruína assombrada após o ataque de 7 de outubro. Tudo o que nosso coletivo construiu ao longo de quase 70 anos foi destruído.

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Não tenho a pretensão de saber o que acontecerá nos próximos anos. Não sei se os habitantes de Gaza optarão por concentrar seus esforços na reconstrução de Khan Younis em vez de queimar Nir Oz. Não sei se as famílias jovens voltarão ao meu kibutz e colherão os frutos de suas árvores. Tudo em que estou concentrada é em levar meu marido de volta para casa.

O que eu sei é que não irei a Gaza uma terceira vez. Talvez um dia os israelenses voltem a fazer uma viagem à praia em Gaza ou recebam comerciantes para um café em suas casas. Espero que nossos dois povos possam finalmente viver em paz, lado a lado. Mas sei que, se o Hamas continuar no poder, isso nunca acontecerá.

* Ruti Munder, 78 anos, é aposentada, moradora do kibutz de Nir Oz, Israel. Ela passou 50 dias como refém em Gaza após o ataque do Hamas em 7 de outubro

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