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Governo da Estônia aluga balsas para abrigar refugiados da Ucrânia

Fluxo migratório causado pela guerra na Ucrânia faz países europeus buscarem alternativas para comportar ucranianos

Por Patricia Cohen
Atualização:

TALLIN – O free-shop no Deck 7 da ferry Isabelle foi transformado em armário e despensa, malas foram empilhadas na seção de perfumaria e geladeiras transparentes estão repletas de embalagens de alimentos etiquetadas. O cassino da embarcação, desativado, se tornou o ponto de encontro dos adolescentes e a casa noturna Starlight Palace, no Deck 8, é onde as mulheres se encontram para costurar redes de camuflagem – e enviá-las aos soldados ucranianos.

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“Isso faz eu me sentir mais próxima deles”, afirmou Diana Kotsenko enquanto costurava tiras de tecido verde, marrom e castanho-avermelhado em uma rede esticada sobre uma moldura metálica, com sua filha de 2 anos, Emiliia, puxando-a pelas calças.

Kotsenko e sua filha vivem há três meses na Isabelle, um navio de passageiros de 171 metros de comprimento alugada pelo governo da Estônia para abrigar temporariamente alguns dos 48 mil refugiados que chegaram a este pequeno país báltico desde que os russos invadiram a Ucrânia, em fevereiro.

Ferry Isabelle ancorado no porto de Tallinn, na Estônia, em imagem do dia 29 de julho deste ano. Embarcação passou a abrigar ucranianos refugiados Foto: Marta Giaccone / NYT

A embarcação, que antes transportava passageiros em uma viagem que varava a noite entre Estocolmo e Riga, Letônia, agora está atracada próximo ao Terminal A do Porto de Tallin, capital da Estônia. Suas 664 cabines abrigam cerca de 1,9 mil pessoas – a maioria mulheres e crianças que entram e saem quando querem da embarcação, através de sua cavernosa porta de cargas.

Os moradores da ferry representam uma minúscula fração dos mais de 6,3 milhões de ucranianos que fugiram para outros países da Europa. A transformação é um sinal das pressões que a onda de refugiados causa sobre os países que os recebe bem, na maioria dos casos.

A Isabelle foi alugada em abril, por quatro meses, da Tallink, uma empresa de transporte marítimo estoniana, com o objetivo de servir de abrigo de emergência. No entanto, sem ter onde colocar seus moradores, o governo estendeu o contrato de aluguel até outubro.

A falta de habitação para os refugiados tem criado intensa pressão em todo o continente, assim como no Reino Unido. Habitações baratas são escassas, e os preços dos aluguéis estão aumentando.

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Na Escócia, o governo anunciou no mês passado que suspendeu o programa de ajuda a refugiados ucranianos em razão da falta de habitações. Na Holanda, refugiados têm dormido sobre a grama de um asilo superlotado no vilarejo de Ter Apel. Na segunda-feira, o Conselho Holandês para Refugiados anunciou planos para processar o governo em razão da falta de abrigos que, segundo a entidade, caiu a um patamar abaixo do padrão mínimo estabelecido pela lei.

Entre todos os desafios que os ucranianos que escaparam para lugares seguros enfrentam, o mais urgente é o acesso à moradia, de acordo com um novo relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O problema para encontrar acomodações mais definitivas deve apenas piorar com a crescente inflação, concluiu o relatório.

“Evidências preliminares também sugerem que a falta de habitação é uma das principais motivações para os refugiados retornarem para a Ucrânia, apesar dos riscos à segurança”, afirmou o documento.

Ucranianas utilizam espaço da balada Starlight Palace para costurar trajes de camuflagem enviados aos soldados ucranianos Foto: Marta Giaccone / NYT

Os governos – que enfrentavam dificuldades para abrigar refugiados e solicitantes de asilo de outras partes do mundo – estabeleceram instalações de acolhimento emergencial, alugaram hotéis e financiaram hospedagens nos lares de seus cidadãos. Entretanto, com os centros de recepção incapazes de atender a alta procura, estádios, contêineres, tendas e até navios de passageiros têm sido usados como moradia provisória.

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Na Estônia, o governo acionou a Tallink, que no passado havia alugado seus navios para servir de habitação temporária durante projetos de construção, hospedar militares e uso em eventos. Uma das embarcações hospedou policiais durante a cúpula do Grupo dos 7 no Reino Unido, no ano passado. Outra foi alugada durante a conferência global sobre o clima em Glasgow, Escócia, no outono passado.

O governo escocês apelou para a Tallink quando testemunhou sua própria crise de habitação de refugiados – e, na semana passada, o primeiro grupo de ucranianos se instalou em um navio da Tallink ancorado no Porto de Edimburgo.

A Holanda também está usando navios de passageiros para abrigar refugiados. Em abril, 1,5 mil refugiados se instalaram em um navio da Holland America Line atracado em Roterdã. Na semana passada, a agência governamental de emissão de asilo anunciou que planejava alugar outras duas embarcações da Tallink por sete meses.

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Em Tallin, a Isabelle havia estado fora de serviço em razão das restrições a viagens relativas à pandemia de covid-19 desde 2020, antes de ser destinada para abrigar refugiados.

Moradores da ferry Isabelle em Tallinn, Estônia, em imagem de 29 de julho. Espaços foram transformados em área de convivência e cabines viraram quartos Foto: Marta Giaccone / NYT

Natalie Shevchenko, uma psicóloga que residia em Kiev, vive na balsa desde abril, quando não conseguiu encontrar apartamento na cidade com um aluguel acessível. Desde então, ela tem trabalhado com mães e crianças a bordo, ajudando-as a se ajustar. “Quando vivemos em um navio, vivemos em uma grande comunidade”, afirmou ela.

No ferry, Schevchenko divide uma cabine apertada no sexto andar com uma outra mulher, não conhecida anteriormente. O local possui um banheiro e o espaço entre as camas é mais estreito do que um corredor de avião. Debaixo das camas, estão malas, sapatos e caixas. Uma corda pendurada entre as paredes serve de varal

Apontando para uma prateleira com garrafas de água e refrigerante, ela diz: “Aqui é nossa cozinha”. Um vaso de flor, que ela ganhou de presente recentemente pelo seu aniversário de 34 anos dos psicólogos estonianos com que trabalha, enfeita o parapeito da janela. “Temos sorte de ter janela”, contou.

Ao contrário do sexto andar, algumas cabines dos decks inferiores não possuem janelas. E isso é um problema para quem teve de se abrigar em bunkers subterrâneos na Ucrânia. “Algumas pessoas têm ataques de pânico”, conta Schevchenko.

Poucas portas adiante fica a cabine que Olga Vasilieva e seu filho de 6 anos dividem com outra mãe e seu filho. As mulheres usam as camas de cima dos beliches para guardar brinquedos, malas e guloseimas, e dormem com os filhos nas camas de baixo, mais estreitas. As cabines maiores são destinadas a famílias com três crianças ou mais.

Um dos benefícios de viver com tantas outras famílias é que há muitas crianças para brincar. “Ele tem tantos amiguinhos”, afirmou Vasilieva, pedindo para Shevchenko traduzir.

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Vasilieva quer voltar para sua casa antes que o ano escolar comece, mas até agora retornar não tem sido seguro. Apesar de ter dois empregos na Ucrânia, afirmou Vasilieva, agora ela não está trabalhando, porque não tem quem cuide de seu filho. Vasilieva afirmou que tem recebido cerca de 400 euros por mês do governo estoniano. Cerca de 100 refugiados instalados na embarcação trabalham para a Tallink, na cozinha e na manutenção do navio. Outros conseguiram trabalho na cidade.

Inna Aristova, de 54 anos, e seu marido, Hrihorii Akinzheli, de 64, que chegaram em maio depois de uma dura jornada a partir de Melitopol, trabalham em uma lavanderia separando lençóis e toalhas. O casal não conseguiu encontrar um apartamento que fosse capaz de pagar. “Sinto-me uma hóspede neste país”, afirmou Aristova, “não em casa”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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