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Crise dos Óvnis indica novo patamar da Guerra Fria entre China e EUA

A desconfiança que sempre permeou as relações entre os dois países está se transformando no que analistas dizem ser algo perturbador: uma disputa entre dois poderes irreconciliáveis

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Por Redação

O balão chinês que sobrevoou os EUA antes de ser abatido, e os outros dispositivos derrubados nos dias seguintes, são prova da crescente indisposição diplomática entre EUA e China. A desconfiança que sempre permeou as relações entre os dois países está se transformando no que analistas dizem ser algo perturbador: uma disputa entre dois poderes irreconciliáveis, cada um certo de que o outro está empenhado em frustrar as ambições e interesses centrais de seu rival.

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O Departamento de Defesa dos EUA confirmou na semana passada que o balão espião chinês que foi abatido na costa da Carolina do Sul no início de fevereiro deveria originalmente conduzir vigilância sobre as bases militares dos EUA em Guam e no Havaí, mas os ventos o desviaram do curso para o Alasca, Canadá e finalmente o continente dos Estados Unidos.

A revelação das ambições do governo chinês de usar balões para rastrear atividades terrestres, de olho nas necessidades domésticas e militares da China chamou a atenção nos últimos dias.

Militares americanos recuperam restos de balão chinês abatido no começo do mês no espaço aéreo dos EUA. Foto: Petty Officer 1st Class Tyler Thompson / AFP

O programa chamou a atenção e a preocupação global quando os EUA derrubaram um balão chinês na costa da Carolina do Sul em 4 de fevereiro, depois de ter viajado pelo país. Desde então, caças americanos também derrubaram três objetos voadores não identificados sobre a América do Norte.

Enquanto isso, Pequim tinha sua própria história a contar. Na segunda feira, o Ministro das Relações Exteriores da China alegou que os EUA teriam enviado pelo menos 10 balões não autorizados que invadiram o espaço aéreo chinês desde o ano passado, declaração feita na esteira da indignação do público americano diante do suposto envio de dezenas de balões de vigilância chineses espalhados pelo mundo. “Os EUA deveriam primeiro pensar nas próprias ações e mudar de comportamento em vez de difamar, desacreditar ou incitar confrontos”, disse aos repórteres Wang Wenbin, porta-voz do ministério.

Funcionários do governo americano rejeitaram rapidamente as alegações chinesas como “falsas”, denunciando-as como tentativa de desviar o foco do programa de balões de vigilância de grandes altitudes da China, que de acordo com os EUA teria violado a soberania de mais de 40 países em cinco continentes. Ao longo da semana passada, funcionários do departamento de estado compartilharam informações a respeito de tais incursões com os representantes de dezenas de outros países.

No sábado, 18, o secretário de Estado, Antony Blinken, e o principal diplomata da China, Wang Yi, se encontraram na Conferência anual de Segurança de Munique, no primeiro encontro cara a cara das duas potências desde que os Estados Unidos derrubaram o balão da China. Não houve nenhuma declaração conjunta nem acenos de visitas oficiais futuras, e os dois diplomatas continuaram criticando as ações dos dois países no incidente dos balões.

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Os episódios refletem como é difícil para os Estados Unidos e a China discernirem as intenções um do outro - uma lacuna que as analistas e autoridades americanas temem levar a cada vez mais desconfiança em um relacionamento já tenso - ou até mesmo a um conflito armado. “Quando a opinião pública de que o outro país é um inimigo se solidifica”, diz Yuen Yuen Ang, estudiosa da China na Universidade Johns Hopkins, “se torna cada vez mais difícil para os líderes nos Estados Unidos e na China suavizar suas posições e estabilizar as relações”.

Embora os balões chineses tenham passado anteriormente pelos Estados Unidos, os alvos americanos do programa de balões parecem ser principalmente bases militares dos EUA no Pacífico. As missões anteriores de reconhecimento dos balões foram relativamente curtas. Quando dois balões espiões passaram pelo Havaí, por exemplo, um sobrevoou uma ilha rapidamente e outro entrou no espaço aéreo ao redor da cadeia de ilhas, mas não sobrevoou.

Pequim pode estar desenvolvendo o programa para complementar sua coleta de inteligência por satélite e também para ter backups dos satélites em caso de guerra com os Estados Unidos, dizem autoridades americanas. “Eles têm 260 satélites de inteligência em órbita”, disse John Culver, ex-analista de inteligência dos EUA na China. “Eles são uma grande potência espacial. Isso pode aumentar essa capacidade.”

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Culver disse que havia um forte incentivo político no sistema chinês para tal programa. “O governo chinês sabe que os EUA normalmente enviam cerca de mil aeronaves de reconhecimento em sua costa todos os anos”, disse ele. “Eles estão frustrados por não poderem revidar. Este programa dá isso a eles. Tem valor político para eles e tem valor em tempo de guerra”.

Agora, os EUA podem procurar outros países e apontar para acontecimentos recentes como evidências da ousadia geopolítica da China. “Os apelos contra as ameaças à ordem liberal ou alertas contra as atividades chinesas no Mar do Sul da China não conseguem nem de longe a eficácia de concentrar a atenção do público em balões imensos espionando instalações militares americanas”, escreveu Richard Fontaine, diretor executivo do Center for a New American Security. “Ao descobrir que seu próprio espaço aéreo pode ter sido violado durante anos pelo governo chinês, outros países devem endurecer também.”

Militares trabalham na localização dos restos do balão chinês abatido. Foto: Mass Communication Specialist 1st Class Ryan Seelbach/U.S. Navy/Handout via Reuters

“As consequências políticas do incidente dos balões estão acabando com as perspectivas de uma cúpula entre Biden e Xi por enquanto”, destacou o Wall Street Journal. “Algumas autoridades chinesas esperavam que a visita prevista de Blinken abrisse caminho para uma cúpula entre os líderes antes mesmo de um encontro anual de lideranças da Ásia-Pacífico agendado para novembro em San Francisco.”

Os analistas alertam para o fato de as atuais linhas de comunicação entre militares americanos e seus colegas chineses serem pouco confiáveis. Chamadas de alto escalão em momentos de tensão ficaram sem resposta no passado recente. Além da desconfiança privada, ambos os países são sensíveis à opinião pública, e o governo Biden em particular é perseguido por uma ala aguerrida de direita sempre disposta a apontar para as supostas concessões dele a Pequim.

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Tudo isso forma um quadro pouco promissor para a eventualidade de um confronto envolvendo outro ponto de atrito. “Nesse contexto, é difícil ver como em uma potencial crise envolvendo Taiwan os dois lados poderiam encontrar espaço para um recuo nas hostilidades”, escreveu David Sacks, do Council on Foreign Relations. “Em vez disso, é muito mais provável que as lideranças em Washington e Pequim se sentissem pressionadas a agir rapidamente, agindo com força para se proteger politicamente.”

“Minha preocupação é uma repetição do caso do EP-3″, disse Lyle Morris, pesquisador sênior do Asia Society Policy Institute, à Associated Press. “E estaremos em um ambiente político muito diferente, de hostilidade e desconfiança, no qual as coisas poderiam dar errado rapidamente.”

Joe Biden e Xi Jinping conversam durante reunião em Bali, na Indonésia. Foto: Doug Mills/The New York Times - 14/11/2022

Seja qual for a profundidade das tensões políticas entre os dois países, os números da economia apontam para uma realidade bem diferente. O comércio bilateral alcançou um recorde de US$ 690 bilhões em 2022, refletindo o indelével elo entre as economias de ambos. Se as condições geopolíticas determinam que EUA e China se veem envolvidos em uma nova Guerra Fria, alguns especialistas defendem que a rivalidade deveria ser abordada com o mesmo pragmatismo visto no século anterior.

“O objetivo ... é acelerar o desenrolar dessa nova guerra fria até chegar direto à trégua”, escreveu Jude Blanchette, especialista em China do Center for Strategic and International Studies, em Washington. “É clara a necessidade de ambas as potências colaborarem em desafios transnacionais partilhados. Mas o estado das relações bilaterais é tão desanimador que, por enquanto e pelo futuro próximo, o verdadeiro teste para ambas as lideranças será evitar uma catástrofe.” / W. POST, NYT e AP

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