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Sobreviventes da 2ª Guerra na Ucrânia veem conflito se repetir

Para alguns ucranianos mais velhos, a invasão russa os faz reviver memórias dolorosas do conflito no qual mais de 5 milhões foram mortos na Ucrânia

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Por Emma Bubola
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Boris Zabarko tinha 6 anos quando os nazistas invadiram o território que atualmente compõe a Ucrânia, em 1941, e sua cidade-natal, Sharhorod, se tornou um gueto judaico. Mulheres, crianças e idosos dormiam em recintos lotados, sem banheiros nem água encanada, afirmou ele. Quando epidemias de tifo se assomaram, o chão congelado não permitia que sepulturas fossem cavadas, e os corpos eram empilhados. O pai e o tio de Zabarko, que lutaram junto ao Exército soviético, morreram em combate.

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Após ser libertado dos nazistas, Zabarko se convenceu de que nada como aquilo jamais voltaria a acontecer. Agora com 86 anos, ele passou uma noite recente na gelada estação ferroviária de Lviv, no oeste da Ucrânia, de pé, numa plataforma lotada, enquanto tentava pegar um trem que pudesse poupá-lo de outra guerra.

“É uma repetição assustadora”, disse ele pelo telefone, de Nuremberg, Alemanha, para onde ele fugiu com a neta de 17 anos, Ilona, a caminho de Stuttgart. “De novo essa guerra assassina.”

Os ucranianos assistiram estarrecidos seu país ser tomado por violência e destruição nas semanas recentes numa magnitude que a maioria deles jamais havia visto, com crianças sendo mortas, covas coletivas abertas e bombardeios a residências e hospitais.

Corpos são jogados em valas comuns em Mariupol, em uma repetição da 2ª Guerra na Europa  Foto: Evgeniy Maloletka/AP

Para alguns ucranianos mais velhos, a invasão russa os faz reviver memórias dolorosas da 2.ª Guerra, na qual mais de 5 milhões de pessoas foram mortas na Ucrânia, mesmo que os números e a escala do atual conflito sejam incomparáveis.

Ecos da guerra mundial são onipresentes desde que a Rússia invadiu a Ucrânia.

O site de notícias Dumskaya.net, de Odessa, Ucrânia, tem terminado seus artigos com uma frase adaptada, inspirada nos jornais locais da época da 2.ª Guerra. Em vez de afirmar “Morte aos invasores alemães”, a mensagem de hoje é “Morte aos invasores russos”. Uma barreira antitanque usada em 1941 foi retirada de um museu em Kiev e instalada em uma rua da capital.

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O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, neto de um veterano do Exército Vermelho, ressignificou uma terminologia daquele conflito descrevendo uma “guerra patriótica” em curso, aludindo para a Grande Guerra Patriótica da União Soviética contra a Alemanha Nazista.

Para os ucranianos, “a 2.ª Guerra é a referência emocional comum mais unificadora que há”, afirmou Markian Dobczanski, historiador do Instituto de Pesquisa Ucraniana de Harvard. Ao mesmo tempo em que o Estado da Ucrânia evoca essas memórias, o povo do país “faz essa conexão por conta própria”, afirmou ele.

Alexandra Deineka, de 83 anos, era uma menina de 3 anos quando perdeu vários dedos das mãos na explosão de uma bomba que atingiu sua casa, em Kharkiv. Este mês, a casa onde ela ainda vivia foi bombardeada outra vez, e parte do telhado ruiu. “É a mesma história de anos atrás”, afirmou seu neto, Dmitro Deineka. “Tudo igual, tudo igual.”

Quando Zabarko escutou sirenes de alerta para ataque aéreo em uma manhã recente, correu para uma garagem subterrânea. E encontrou no local pessoas que haviam passado a noite por lá, protegendo-se de mísseis e bombas que caíam sobre a cidade, incluindo mães com bebês em carrinhos, apavoradas demais para fugir. Sua mente retornou imediatamente para 1941.

“A sensação é a mesma”, afirmou Zabarko. “É a morte sobrevoando nossas cabeças.”

Zabarko passou dias abrigado em seu apartamento, até que sua neta passou a sofrer uma ansiedade insuportável, afirmou ele, e a mãe da jovem pediu que ele a tirasse da Ucrânia. Ambos pegaram covid ao viajar em trens lotados.

Boris Zabarko com sua neta Ilona, em Stuttgart, na Alemanha, após deixar Ucrânia Foto: FELIX SCHMITT

“Acreditamos que nós, nossos filhos e netos viveríamos uma vida em paz”, afirmou ele, “e agora há outra guerra, com pessoas morrendo, sangue sendo derramado”.

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Depois que os alemães invadiram o território que agora compõe a Ucrânia, eles cederam a região da Transnístria para a Romênia, sua aliada, que deportou milhares de judeus para Sharhorod, confinando-os por lá.

Depois da guerra, Zabarko formou-se historiador, escreveu livros sobre o Holocausto e dirigiu uma associação de sobreviventes. Agora ele sente que o trabalho de sua vida falou a ouvidos moucos.

“Esta é minha tragédia pessoal”, afirmou ele. “Se tivéssemos aprendido essas lições, não teríamos guerra na Ucrânia, não teríamos nenhuma outra guerra.”

Ele acrescentou, “Em muitos anos, esta é a primeira vez, mas sabemos aonde a guerra nos leva; já vivenciamos a guerra”.

Cerca de 1,5 milhão de judeus foram mortos na Ucrânia durante o Holocausto. Em Babi Yar, em Kiev, cerca de 34 mil judeus foram mortos em apenas dois dias, em um dos piores massacres perpetrados durante o Holocausto. Entre as vítimas, estavam a tia e a avó de Svetlana Petrovskaia, que fugiu de Kiev com a mãe após a invasão nazista.

Em 1.º de março, o Memorial do Holocausto de Babi Yar, em Kiev, afirmou que forças russas atacaram o local. “Agora são as bombas de Putin que explodem em Babi Yar”, afirmou a professora de história Petrovskaia, de 87 anos. “É impossível entender isso.”

‘Muito parecido com 1941′

Depois que Petrovskaia fugiu com a mãe em um trem de transporte de gado, seu pai virou prisioneiro de guerra. Quando a família voltou para Kiev, em 1944, Petrovskaia e outras crianças ajudavam nas obras de reconstrução da cidade depois da escola.

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Agora, 82 anos depois, Petrovskaia deixou Kiev em um ônibus que transportou idosos e crianças até Budapeste, após colocar na mala suas jóias, alguns livros de poesia, os cachimbos de seu marido já morto e cartas que ele recebeu de seus ex-alunos.

“Sou uma pessoa forte, não chorei quando meu marido morreu, mas caí em lágrimas quando deixei Kiev”, afirmou ela. “Foi muito parecido com 1941.”

Nos anos 40, colaboracionistas locais auxiliaram os nazistas a perpetrar o Holocausto, mas a maioria dos ucranianos — mais de 3 milhões — lutou ao lado do Exército Vermelho contra os nazistas.

Um dos combatentes foi o físico Ihor Yukhnovskii, ex-vice-primeiro-ministro da Ucrânia. Yukhnovskii cresceu sob governo polonês no oeste ucraniano quando a região pertencia àquele país — e viveu sob as ocupações nazista e soviética.

“O povo ucraniano fez muito durante a 2.ª Guerra; a Rússia deve muito à Ucrânia”, afirmou pelo telefone Yukhnovskii, de 96 anos, de sua casa em Lviv. “É muito triste que o presidente russo não tenha um mínimo de respeito.”

Em 1991, Yukhnovskii foi um dos parlamentares que defendeu a independência da Ucrânia. Agora, seu neto foi convocado para lutar. “Pensar que desistiremos disso é completamente absurdo”, afirmou ele.

Ida Lesich e sua mãe estavam entre os mais de 2 milhões de pessoas mandadas pelos nazistas para campos de trabalho forçado na Alemanha. Em 1943, a mãe dela morreu no local, depois de passar meses quebrando pedras, e Lesich cresceu num orfanato em Kiev.

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Em um telefonema de Kiev, de onde ela se recusa a sair, Lesich, de 85 anos, afirmou que guardou as lembranças da guerra por toda a sua vida. Mas, quando as bombas começaram a cair sobre a Ucrânia, essas memórias voltaram.

Quando Maria Stasenko tinha 22 anos, o marido dela se alistou no Exército soviético. Ela permaneceu em Dnipro com o filho de 4 anos mesmo enquanto sua casa foi ocupada por soldados alemães. Agora, o neto dela é um dos ucranianos que se prepara para o combate.

“É minha terceira guerra”, afirmou pelo telefone, em sua casa na periferia de Dnipro, Stasenko, de 102 anos, que nasceu assim que a 1.ª Guerra acabou. “Jamais pensei que haveria mais uma.”

Durante a 2.ª Guerra, Stasenko se voluntariou em sua cidade, ajudando a consertar trilhos de trem destroçados. Agora, como muitos sobreviventes do conflito, ela está velha demais para fugir, incapaz de buscar refúgio, encerrada em seus medos e memórias. “Não sei se conseguirei sobreviver desta vez.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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