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Violência destrói Estado haitiano

Duas décadas de golpes, disputas internas e intervenções estrangeiras desintegram instituições e ampliam miséria

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Por Claudio Mafra
Atualização:

O Haiti, que é o país mais pobre do mundo fora da África, com 80% de sua população abaixo da linha da pobreza, deixou de ser um Estado, um país que se autogoverna. Depois de 20 anos de golpes militares e paramilitares - e várias intervenções dos Estados Unidos e das Nações Unidas, suas instituições desmoronaram. O atual presidente, René Préval, está totalmente dependente da ajuda dos organismos internacionais que atuam dentro do seu país tentando estabelecer bases econômicas e institucionais que garantam um mínimo de esperança para o futuro. Talvez ainda mais significativo seja a presença das tropas de 11 nações, que procuram impor a lei e a ordem sob o comando da ONU. Préval é aliado político do problemático Jean-Bertrand Aristide que por duas vezes foi eleito presidente. Aristide tornou-se figura conhecida na comunidade internacional porque surgiu como uma promessa de democracia e estabilidade, mas, de crise em crise, entrando e saindo da presidência, 1991, 1991-1994, 2001-2004, mostrou ser não mais que outro demagogo de vocação ditatorial nas repúblicas de bananas - com a única diferença de ser padre e falar francês. Sua administração também esteve sob dependência de organismos internacionais. Agora está exilado na África do Sul, de onde, infelizmente para muitos, promete voltar. ''''PAPA DOC'''' Parece que os últimos presidentes que governaram o Haiti como um Estado de fato, e até hoje são a maior referência que o mundo tem sobre esse país, foram os terríveis Papa Doc, e seu filho, o gordo Baby Doc. O médico François Duvalier, o Papa Doc, que esteve no poder de 1957 até 1971, é seguramente a figura mais famosa de toda a história do Haiti. Foi um ditador sanguinário, excomungado pela Igreja Católica por sua ligação com o vodu, um tipo de umbanda com traços de malignidade. Mas a marca registrada de Papa Doc foi ter criado uma polícia especial subordinada unicamente a ele próprio. O Haiti é um país de negros, o número de mulatos e brancos é inexpressivo. Então essa polícia exclusivamente de negros, vestindo ternos e gravatas escuras, uma espécie de versão haitiana do FBI, usando óculos redondos também escuros (o que foi novidade na época), fez sucesso em todo o mundo pelo exotismo da sua aparência, aliada a um comportamento de crueldade e mistério. Eram chamados pelos haitianos de Tonton Macoutes ( bicho-papão), cujo comportamento, segundo a imagem feita por um motorista haitiano, era de ''''um búfalo, ou um leão na selva''''. A personalidade e o visual Tonton Macoute transformaram-se em um cult. A bem da verdade, o mundo da época só tomou conhecimento de que existia o Haiti por causa do fascínio macabro do seu regime. Um dos que ficaram impressionados foi o grande escritor inglês Graham Greene, que esteve em Porto Príncipe em 1965 e escreveu o romance Os Comediantes, mostrando o horror da ditadura de Duvalier. Greene hospedava-se no Hotel Oloffson, que ele usou com o nome de Trianon como ponto de referência para alguns momentos no livro. Hoje, completamente decadente, o Oloffson continua apenas como expressão da colonização francesa. Papa Doc não gostou do romance : ''''O livro não é bem escrito. Como obra de um escritor e de um jornalista não tem nenhum valor.'''' ''''BABY DOC'''' Com sua morte, François Duvalier foi sucedido pelo seu filho, Jean-Claude Duvalier, apelidado com perfeição pela imprensa internacional de Baby Doc, uma figura estranhíssima, gordo, ocioso, uma certa indefinição sexual, que foi deposto em 1986, fugindo para a Riviera Francesa - onde vive muito bem até hoje, gastando os milhões de dólares roubados pelo seu pai e por ele mesmo. A França burocraticamente recusa-se a extraditá-lo. Enfim, quando Baby Doc se foi, acabou-se o charme do regime. Muitos haitianos repetem a eterna ladainha dos que prezam pouco a liberdade: ''''No tempo de Papa Doc era melhor, havia mais segurança.'''' TROPAS DE PAZ O general brasileiro Santos Cruz é o atual comandante das tropas enviadas pela ONU ao Haiti para liquidar com as milícias, os assassinos e seqüestradores, que sob manto de reivindicações políticas (seriam ''''partidários'''' de Aristide), praticam a bandidagem pura e simples. O nome oficial é Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti - Minustah. Para chegar até ele, no Hotel Montana, passa-se por 6 soldados pesadamente armados. O general está satisfeito. Tudo está dando certo. Ele comanda as tropas da Argentina, Uruguai, Sri Lanka, Brasil, Chile, Peru, Jordânia, Guatemala, Filipinas, Nepal e Equador, um total flutuante de 6.345 homens. O contingente do Brasil é o maior, com 1.211 homens ao qual estão agregados 30 soldados paraguaios. Os brasileiros são voluntários, passam por um processo de treinamento entre quatro e seis meses, ficam no Haiti durante seis meses e são substituídos em sistema de rodízio segundo critério do Exército. Ganham por volta de US$ 900 mensais. Os meses de janeiro, fevereiro e março deste ano foram difíceis para as tropas. ''''O enfrentamento foi fortíssimo'''', diz o general Santos Cruz. ''''Muito tiroteio, alguns soldados da Bolívia e da Jordânia foram feridos.'''' Ele mesmo esteve em meio ao fogo cerrado. ''''Nós temos de dar uma resposta proporcional, não podemos exagerar e correr o risco de altos danos colaterais, atingir os civis inocentes. Felizmente o preparo é muito bom, e conseguimos nos sair bem nas emboscadas. Desde abril que não damos tiros.'''' Hoje não resta dúvida de que as tropas da ONU derrotaram as milícias VACINAS A cooperação brasileira fora da área militar foi descrita pela ministra-conselheira da embaixada brasileira, Isabel Heyvaert: ''''É vantajoso para o Haiti a grande experiência do Brasil em campanhas de vacinação para populações de difícil acesso, em lugares sem energia onde a conservação das vacinas é difícil. Esse é um projeto tripartite, porque o Canadá também participa.'''' ''''Outra contribuição nossa é o sistema de transferência de tecnologia de produção do caju'''', prossegue. O caju é uma importante atividade econômica do norte do Haiti, no entanto as plantas são velhas e os métodos arcaicos. O Brasil é grande exportador e estamos trabalhando para introduzir técnicas modernas e variedades novas do caju tipo anão, que se tornam produtivos em um ano.'''' Isabel ainda lista os cursos de defesa civil, de capacitação para bombeiros e aeroportuários - tão bem-sucedidos que o Haiti pediu um novo grupo de instrutores para 2007 - e enfatiza o projeto Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) ''''orientado para a coleta e o tratamento de lixo sólido em Carrefour Feuille, um bairro de Porto Príncipe. A idéia e a de que ao gerar renda para a população local, haja redução de violência, além de que sirva de modelo para outras áreas do país''''. Em resumo, a posição do Brasil em relação ao Haiti sustenta-se, segundo a diplomata, na seguinte premissa: ''''A cooperação técnica deve ser intensificada, e o Brasil vem insistindo com a comunidade internacional para que isso aconteça. O pressuposto óbvio é o de que se não houver desenvolvimento o país pode voltar ao ponto de partida.'''' O Brasil, junto com a Espanha, também vem atuando no reflorestamento do Haiti, que é um país ecologicamente devastado, onde não se consegue enxergar duas árvores juntas.

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