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‘A escola não precisa ser o único lugar do aprendizado’, diz pioneiro do ensino online

Em entrevista ao Estadão, Salman Khan, criador da Khan Academy, faz análise sobre a experiência de aulas pela internet durante a pandemia; ele defende ainda que acesso à internet e bons dispositivos deve ser tão importante quanto água e luz

Por Bruno Capelas
Atualização:
'Entre um professor incrível e uma tecnologia incrível, fico sempre com o professor, mas não precisamos fazer essa escolha', diz Salman Khan Foto: Khan Academy

Durante anos, a educação online foi um tema subestimado – parecia papo para gente otimista demais com a tecnologia ou então só uma opção para quem não podia passar horas em uma sala de aula. Em 2020, tudo mudou: de repente, o mundo inteiro teve que descobrir como aprender ciências, matemática e geografia na frente de uma tela. A experiência pode ter sido frustrante para muita gente, mas não deve servir como indício que aulas online não funcionam, diz o americano Salman Khan, pioneiro do ensino pela internet. 

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“A forma como estamos usando educação online hoje está aquém do ideal, mas acredito que a escola não precisa ser o único lugar do aprendizado”, afirma ele, em entrevista exclusiva ao Estadão. Antes que se diga que Khan é um radical, ele explica: não é preciso escolher entre a tecnologia e as aulas presenciais – um pode estar a serviço do outro. “É possível deixar as aulas expositivas para a internet e aproveitar o tempo ao vivo com interação, comunicação e tutoria”, diz. 

Ele tem propriedade no assunto: há mais de uma década, está à frente da Khan Academy. Inicialmente um canal com aulas de reforço no YouTube, a organização sem fins lucrativos se expandiu para ser uma plataforma com conteúdo do ensino básico (e também aulas de programação) usadas no mundo todo por 18 milhões de alunos. Durante a pandemia, o tráfego do site, apoiado por fundações de nomes como Bill Gates e Jorge Paulo Lemann, subiu quase 300%. 

Ao Estadão, Khan fala sobre como vê a experiência atual da educação pela internet e como ela pode se mesclar às aulas presenciais no futuro. “A tecnologia tem de estar a serviço dos professores e alunos”, diz. Ele também discute a importância de uma educação interativa e propõe que ter acesso à internet e a um dispositivo no qual se pode digitar e assistir a aulas será tão importante para uma residência quanto ter água, luz e saneamento básico. A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Muita gente, nos últimos meses, teve de usar a educação online como sua principal ferramenta. Como o sr. avalia a experiência?

As pessoas me associam bastante com a educação online, então você poderia achar que estou empolgado. Mas sou o primeiro a dizer que a forma como estamos usando educação online hoje está aquém do que seria considerado ideal. Por causa da pandemia, a educação à distância não é tão boa quanto seria numa sala com amigos e professores. Hoje, há escolas fazendo um bom trabalho. Outras, nem tanto, mas há boas razões para isso. Replicar o que acontece na sala de aula em videoconferências não basta. É preciso se aproveitar da tecnologia de forma diferente. Sabemos que globalmente há muitas famílias que não tem acesso à internet ou a dispositivos de qualidade. Às vezes, isso também não é o suficiente: falta apoio ou até mesmo espaço para se estudar em casa. É um período complexo e entendo que muitas crianças não consegue se engajar nas aulas online. Mais que isso: elas estão esquecendo o que sabem, atrofiando suas habilidades. A pandemia ainda vai durar mais um tempo, ao todo será pelo menos um ano inteiro em que as crianças estarão longe dos amigos, às vezes tendo de passar mais tempo em habitações longe do ideal. 

Muito se fala que a pandemia pode acelerar a digitalização, mas há um risco da educação online sofrer uma rejeição maior no futuro por conta de experiências ruins no presente? 

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Encorajo as pessoas a não pensar nos extremos. Aprendemos a distância há séculos, como com cursos de correspondência. O importante não é pensar na tecnologia como um absoluto, mas sim nos objetivos pedagógicos. A partir deles, dá para entender que ferramentas podem ser usadas. Acredito que o aprendizado não deve ser restrito a tempo ou espaço. Ele deve também estar ligado às necessidades e realidades dos estudantes. Há 400 anos, a nobreza fazia isso com tutores. Isso é muito caro. Mas o online pode ajudar nesse sentido. Acredito que a escola não precisa ser o único lugar onde o aprendizado acontece. Uma instrução inicial sobre um tema, uma aula expositiva, pode ser feita pela internet. E ao juntar as pessoas num espaço físico, é possível ter uma aula mais interativa, o professor pode fazer a tutoria dedicada de um aluno ou um grupo de alunos. Além disso, a internet pode ser útil para explorar interesses ou lacunas: se você quer aprender sobre história russa ou se na sua região não há um bom professor de cálculo avançado, por que não usar um professor pela internet? Enquanto isso, um professor mais próximo pode ajudar a mediar essa relação. 

O sr. acredita que a educação online pode substituir as aulas presenciais? 

Se eu tiver que escolher entre um professor incrível e uma tecnologia incrível, fico sempre com o professor. Para mim, não é uma questão de um ser melhor que o outro. Não precisamos fazer essa escolha. A tecnologia pode estar a serviço dos professores e dos alunos. Pense nisso com um grão de sal, claro. Em condições ideais, uma aula presencial será melhor que uma aula virtual. É possível fazer um diálogo socrático no Zoom? Claro, mas ao vivo você vê a reação das pessoas ao mesmo tempo. Além disso, há benefícios intangíveis na comunicação pessoal, ao conversar com um colega no intervalo entre as classes. Agora, é preciso pensar no oposto: se você tem uma aula online interativa, com muita gente participando, ela com certeza é melhor do que uma aula presencial em que o professor passa uma hora falando e todo mundo dorme. A questão é: o que é chato ao vivo se torna ainda mais chato online. É preciso repensar o online. Hoje, por limitações de tempo e espaço, professores dão aulas de uma hora, cinco dias por semana, para turmas de 30 pessoas. Será que não é melhor fazer uma aula de 10 minutos com cinco crianças? É uma interação personalizada, com a ajuda necessária. Ter 10 minutos da atenção de um professor pode ser melhor do que uma hora só de discurso. 

Nas redes sociais, hoje vemos muitos vídeos sobre professores chorando quando as crianças abrem suas câmeras. O que significa que muitas crianças não estão interagindo com os professores. O quanto essa interação importa? 

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Em muitos lugares, entendo que as câmeras não sejam ligadas por questões de conectividade. Mas não é sempre, claro. Se as crianças não estão com as câmeras ligadas, é bem provável que elas não vão se engajar. Por outro lado, é preciso ponderar como essas aulas estão sendo dadas. Uma aula ao vivo no Zoom na qual o professor fala por mais de 3 minutos sozinho não deveria ser ao vivo. Deveria ser um vídeo gravado. Ao vivo, os estudantes devem ser chamados para participar, aleatoriamente. A sensação de precisar estar alerta faz as pessoas prestarem atenção – em reuniões, nós adultos lidamos do mesmo jeito, não é mesmo? 

A Khan Academy tem cursos do ensino básico, mas também aulas de programação. Como o sr. explica sua estrutura? 

Criamos a Khan Academy como uma forma de trazer reforço para os estudantes. Muitas crianças vão à escola mas acabam tendo dificuldade ao entender um assunto ou se preparar para uma prova. Podemos dar explicações, ajudando cada aluno a aprender no seu ritmo e na sua vontade. A plataforma pode tanto ser usada individualmente como também como apoio, determinado pelos professores. 

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Olhando o site da Khan Academy, percebi quanto conteúdo diferente é ensinado no Ensino Médio. Parece um desafio aprender tanta coisa ao mesmo tempo – e em um espaço de tempo curto. O que o sr. acha disso? 

O Ensino Médio tenta cobrir muitos assuntos e poucas crianças conseguem reter muito desse conteúdo. Eu sou fã do “menos é mais”. Acredito que é importante focar no que as pessoas precisam aprender – e acho que isso é uma lição válida para os tempos que estamos vivendo. Para crianças menores, acredito que o foco está em leitura, línguas e matemática. Para os maiores, acredito que aprofundar aprendizados seria interessante. Eu faço parte da direção da Khan School Lab, uma escola física baseada na Khan Academy. Vivo discutindo com os professores: por que não fazer duas aulas com mais tempo, que permitam profundidade, em vez de cinco aulas por dia? Mais tempo permite aos estudantes ter uma imersão completa num tema. 

Nos últimos anos, países como o Brasil passaram a ter muito mais pessoas online, mas essa inclusão aconteceu via smartphones. São aparelhos com velocidade e possibilidades de uso limitados. É algo que pode limitar o alcance da educação online? 

Na Khan Academy, tentamos fazer as coisas mais acessíveis o possível. Temos apps, porque sabemos que um celular é o principal meio de acesso à internet na maior parte do mundo. Mas para aprendizado, é preciso ter uma boa tela, para que você possa assistir às aulas, digitar um artigo ou mesmo fazer um trabalho visual. Espero que a covid-19 seja um catalisador para uma mudança de comportamento. Hoje, uma casa que não tem água, luz, aquecimento ou saneamento básico é vista como um lugar não aceitável para se morar, abaixo das condições ideais. Com a pandemia, acredito que precisamos e passaremos a ter uma visão similar para lugares que não têm uma conexão de internet e um dispositivo que você pode digitar de forma plena. Não é só uma questão acadêmica. É uma questão de estar empoderado economicamente, na pandemia ou não. 

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