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Agência de Petróleo diz que desembargadores atendem pedidos de royalties ‘baseados em nada’

Em despachos internos, ANP nominou três magistrados do TRF-1 e classificou processos como ‘ações judiciais de alegações genéricas’ que ‘distorcem grosseiramente’ as regras da legislação do petróleo e ‘trazem inúmeras inverdades’

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Foto do author Vinícius Valfré
Foto do author Daniel  Weterman
Por Julia Affonso , Vinícius Valfré e Daniel Weterman

BRASÍLIA – A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) mapeou, internamente, a atuação de desembargadores do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) que autorizaram o pagamento de R$ 125 milhões em royalties para municípios que não produzem uma gota de petróleo nem atendem a outros critérios da lei. As decisões obtidas pelo grupo de um lobista acenderam um alerta no órgão, conforme documentos obtidos pelo Estadão, pois os magistrados atenderam pedidos que se baseiam em nada”.

A ANP usou gráficos e tabelas para consolidar um panorama interno sobre as decisões proferidas pelos desembargadores Carlos Augusto Pires Brandão, Antonio Souza Prudente e Daniele Maranhão, do TRF-1. Uma nota técnica foi editada em março do ano passado para orientar procuradores da Advocacia-Geral da União (AGU), que defendem a ANP na Justiça, em recursos apresentados contra as ações movidas pelos advogados do grupo do lobista Rubens Machado de Oliveira.

ANP mapeou a atuação de três desembargadores do TRF-1 nos processos movidos por advogados que solicitavam royalties para pequenos municípios Foto: Reprodução

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Em despachos internos a agência passou a classificar esses processos como “ações judiciais de alegações genéricas”, porque os pedidos apresentados pelos advogados “se baseiam em nada”, “distorcem grosseiramente” as regras da legislação do petróleo e “trazem inúmeras inverdades”. No rol de argumentos, houve espaço até para os advogados mencionarem aleatoriamente “Bíblia”, “Floresta Nacional”, aves, mamíferos e problemas com a covid-19 e com enchentes.

A “tese” que convenceu os magistrados foi criada pelo lobista. Os advogados arregimentados por ele apenas assinam as peças. Ao contestar um dos processos do grupo de Rubens de Oliveira, a AGU sinalizou à Justiça Federal de Brasília a dificuldade que vinha tendo com as “ações genéricas”. Segundo os procuradores, “contestar uma ação elaborada nestes termos” era “um desafio de exegese”, ou seja, de interpretação.

“É preciso imaginar as diversas situações as quais se refere o autor em suas alegações, para então ancorar uma linha de defesa que seja algo coerente com o que se imagina ser a reivindicação deduzida”, afirmou a AGU.

A ANP citou nominalmente os advogados Gustavo Freitas Macedo, Maria de Fátima Madruga Mendes e Marli de Oliveira como os profissionais que moviam as ações genéricas. Todos são associados ao lobista Rubens de Oliveira, condenado por estelionato e investigado por lavagem de dinheiro. O grupo já obteve R$ 25,7 milhões em honorários com as vitórias no TRF-1 desde janeiro de 2021.

ANP mapeou, em março de 2022, a apresentação de "ações genéricas" à Justiça. Estadão revelou que esquema de lobista chegou a 56 prefeituras Foto: Reprodução

Os processos preocuparam a agência, pois adotavam a “mesma sistemática” e avançavam “com rapidez e capilaridade”. Trecho de uma nota técnica de março de 2022 destacou a decisão do desembargador Pires Brandão que beneficiou o município de Barra de São Miguel (AL). A prefeitura é administrada por Biu de Lira (PP), pai do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Ambos são filiados ao Progressistas alagoano.

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Pires Brandão autorizou Barra de São Miguel a receber royalties milionários pelo critério de detentora de instalações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural. O município, contudo, não tem este tipo de estrutura. A ANP fez, então, um alerta aos procuradores da AGU “para a excepcional gravidade” da decisão que poderia “se transformar num divisor de águas potencialmente catastrófico” na distribuição dos royalties.

“Esta decisão institui pela via judicial novo critério de distribuição de royalties, genericamente intitulado “confrontante”, e define o parâmetro a ser adotado para apuração do valor a ser distribuído aos municípios-autores agraciados que, em completa deturpação da vontade do legislador, receberão parcela dos royalties que deveria ser destinada unicamente aos municípios que de fato possuem em seus limites territoriais instalações de embarque e desembarque”, afirmou a ANP.

O precedente aberto por Pires Brandão para a cidade de Lira abriu caminho para que outras duas cidades do Amazonas, representadas pelo mesmo grupo, multiplicassem suas receitas com esta compensação financeira. São Gabriel da Cachoeira e São Paulo de Olivença também obtiveram royalties por instalações que os municípios não têm. As três cidades já levaram R$ 41,9 milhões. Conforme os contratos sem licitação firmados com os advogados, o grupo do lobista leva 20% do arrecadado.

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Como mostrou o Estadão, a receita milionária recebida por Barra de São Miguel foi torrada pela prefeitura com advogados e inchando a máquina pública. O município já comprometeu R$ 3,9 milhões com Gustavo Freitas Macedo, cujo escritório individual fica em Três de Maio (RS). Contrato obtido pela reportagem mostra que o advogado divide os valores com Rubens de Oliveira, com a mulher do lobista - dona de uma loja de cesta de café da manhã - e com um primo dele.

Um dos casos que mais chamaram a atenção da ANP foi o pagamento de royalties ao município de Faro (PA). O desembargador Souza Prudente autorizou os repasses à cidade, causando perplexidade na agência.

Mesmo o Estado do Pará não possuindo qualquer registro de produção de petróleo e gás natural, seja marítima ou terrestre, nem qualquer instalação de embarque e desembarque (não há sequer gasodutos de transporte no Estado e, por óbvio, pontos de entrega de gás natural), foi proferida decisão judicial.”

Relatório da ANP

Os documentos internos da agência, obtidos pelo Estadão, coincidem com as reportagens publicadas desde a terça-feira, 25. Os registros mostram que a ANP tentou organizar uma defesa contra as ações genéricas protocoladas pelos advogados. A agência não chegou a identificar, contudo, que o grupo é liderado por Rubens de Oliveira. Além disso, o relatório mapeou somente parte das ações ajuizadas por três dos cinco advogados ligados ao lobista. As reportagens mostraram que a atuação é ainda mais ramificada e alcança 56 cidades de oito Estados.

Procurado, o TRF-1 informou que os magistrados não se manifestariam. Individualmente, apenas a desembargadora Daniele Maranhão declarou que “tem 30 anos de magistratura e sempre pautou suas decisões pelas leis e pelos princípios que regem a jurisdição”.

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A prefeitura de Barra de São Miguel e as advogadas Maria de Fátima Farias e Marli de Oliveira não responderam aos questionamentos da reportagem. O advogado Gustavo Freitas Macedo afirma ter experiência no setor de royalties de petróleo e diz morar na cidade de Três de Maio (RS) “diante das circunstâncias da pandemia com problemas de saúde na família”.

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