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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Como os EUA podem fazer a China perder mais um contrato bilionário do Exército e a reação petista

Compra de viatura blindada de combate obuseiro autopropulsado é o próximo terreno da disputa entre chineses e fornecedores ocidentais; esquerda defende fim da ‘dependência americana’

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Por Marcelo Godoy
Atualização:

Após fechar um contrato de cerca de R$ 5 bilhões para comprar os blindados Centauro 2, o Exército brasileiro se prepara para uma nova compra bilionária que deve opor a China a fornecedores ocidentais. A Força Terrestre planeja adquirir, por meio de uma licitação internacional, 36 viaturas blindadas de combate obuseiros de 155 mm autopropulsados sobre rodas (VBCOAP-SR) para equipar unidades de artilharia divisionária, um negócio estimado em cerca de R$ 1 bilhão.

O Caesar francês (foto) e o Atmos israelense estão entre os veículos blindados de cavalaria obuseiro de 155 mm autopropulsados sobre rodas que podem ser adquiridos pelo Exército Foto: Reprodução/Estadão

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No dia 14 de julho, o general Fernando José Sant’Ana Soares e Silva, chefe do Estado‐Maior do Exército, assinou a portaria 1019 com os requisitos operacionais absolutos (ROA) e desejáveis (ROD) das novas viaturas que o Exército pretende comprar. O documento foi publicado no Boletim do Exército do dia 28 de julho. O anexo 3 do edital feito pelo Comando Logístico (Colog), do Exército, traz 40 ROAs e 23 RODs, adaptando esse sistema de artilharia aos conhecimentos adquiridos no teatro de operações da Ucrânia.

Ao todo, 19 empresas se habilitaram para receber a documentação, entre elas a chinesa Norinco. É aí que os requisitos operacionais devem se tornar decisivos. Primeiro para desclassificar os fabricantes que usam calibres diferentes do padrão OTAN (155 mm). Depois, os que forem ainda protótipos estarão fora. Por fim, o ROA 33 determina que o produto a ser comprado deve “possuir meios de comunicações adotados no Sistema de Comando Controle da Força Terrestre 7/11 (SC2FTer)”.

É aqui que a Norinco deve enfrentar problemas. A questão é que a maioria dos rádios veiculares adquiridos pelo Exército brasileiro para compor o Sistema Tático de Comunicações é da Harris Corporation, um fabricante americano. Entre eles está o Harris RF-7800V, que equipa, por exemplo, as viaturas de comando do sistema Astros de foguetes. No campo de batalha, uma viatura blindada de combate deve ter capacidade de se comunicar com outras viaturas, daí a necessidade de que o equipamento a ser comprado tenha rádio compatível com o que já existe no Exército.

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O Caesar francês e o Atmos israelense (foto) estão entre os veículos blindados de cavalaria obuseiro de 155 mm autopropulsados sobre rodas que podem ser adquiridos pelo Exército Foto: Reprodução/Estadão

A dor da cabeça dos chineses está na disposição dos americanos de impedir a expansão e a influência da República Popular da China no hemisfério ocidental. Em 4 de agosto, a general Laura Richardson, do comando militar do Sul (SouthCom), deixou claro os esforços dos Estados Unidos para conter a crescente influência da China na região. E um dos pontos que a general fez questão de frisar foi a presença dos chineses na área de comunicações, particularmente, na expansão da tecnologia 5G de telefonia celular.

A general Richardson, em entrevista ao Centro de Estudos Estratégicos Internacionais, demonstrou ainda preocupação com o que impediria empresas americanas de concorrerem na região contra empresas chinesas em licitações governamentais. “Temos de obter soluções ocidentais, soluções democráticas na área econômica, porque existem iniciativas para fazer a diferença. Somos capazes de investir na região. Estes são nossos vizinhos. O sucesso deles está inextricavelmente ligado à segurança deste hemisfério.”

Na prática, como mostrou a revista Tecnologia & Defesa, isso pode significar que mais uma vez os EUA vão pôr o seu veto na possibilidade de o sistema de comunicação de rádio dos obuseiros sobre rodas SH-15, da Norinco, conversar com os rádios de outras viaturas blindadas de combate já existentes no Exército brasileiro, a maioria delas equipada com os rádios americanos da Harris Corporation.

O rádio americano Harris RF-7800H-MP, que equipa as viaturas de comando e controle do Astros como parte do sistema de comunicação SC2FTER Foto: Reprodução/Estadão

Foi assim na concorrência internacional que terminou com o contrato de R$ 5 bilhões para a compra dos 98 blindados caça-tanques Centauro 2, do consórcio italiano Iveco-Oto Melara, em 2022. Ali os americanos vetaram a integração de seus rádios com o sistema do blindado chinês ST1-BR, também da Norinco, o que o fez ficar em último lugar entre os concorrentes, atrás do Centauro 2 e do LAV-700 AG, produzido no Canadá pela norte-americana General Dynamics Land Systems (GDLS).

A possível restrição americana deve favorecer de novo os concorrentes da Norinco. Desta vez, o francês KNDS Caesar e o israelense Elbit Atmos. Trata-se de dois armamentos presentes no teatro europeu e fabricados por aliados tradicionais americanos. Recentemente, a Dinamarca enviou, por exemplo, 19 Caesars de 155 mm à Ucrânia e procurou a isralense Elbit para comprar 19 Atmos de igual calibre por US$ 117 milhões (cerca de R$ 570 milhões) a fim de repor o equipamento em seu Exército.

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Militares ouvidos pela coluna consideram normal que equipamentos chineses e russos enfrentem esse tipo de dificuldade no Brasil. E lembram o caso do calibre russo de 152 mm, que não é compatível com o equipamento em uso no País, em sua imensa maioria de origem ocidental e, portanto, segue os padrões da OTAN. Caso os rádios da Harris sejam considerados parte do equipamento padrão brasileiro, isso teria consequência no processo de aquisição de equipamentos que podem ser “adotados” pelo Exército.

O Exército lembra, porém, que, apesar de a Força possuir rádios Harris, o planejamento da instituição é substitui-los por um rádio, produzido pela Imbel, de nome Mallet. A aparelho está em fase final de avaliação e deve ser adotado, segundo o Exército, em breve, o que poderia dificultar a estratégia americana contra a escolha do obuseiro da Norinco. Outro ponto lembrado é que a escolha do obuseiro não “passa por preferências geopolíticas; é uma licitação, quem ganhar, leva”.

O general Fernando José Sant'Ana Soares e Silva, chefe do Estado-Maior do Exército  Foto: Wagner Pires

Entre petistas e estudiosos que participaram da elaboração do programa de Defesa do atual governo, essa é uma situação incômoda, que estaria em choque com a política externa brasileira, que busca neutralidade em mundo multipolar e desenvolvimento tecnológico autônomo. Um dos maiores críticos é o ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos da Defesa (Abed) Manuel Domingos Neto.

Em seu recém-lançado livro O que fazer com o militar, Domingos Neto afirma: “Não obstante (o presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva) ser favorável à integração sul-americana, a Política Nacional de Defesa em análise no Congresso prioriza alianças estratégicas com potências imperialistas.”

Para ele, “por sua capacidade técnica e científica, por seu desenvolvimento industrial, não há explicações aceitáveis para a elevada dependência externa do Brasil em material bélico”. “Os Estados Unidos não largam mão do controle do material de guerra produzido no Ocidente.” Domingos tem como interlocutores o petista José Genoino e o ex-ministro Roberto Amaral (Ciência e Tecnologia). Foi ainda um dos convidados do seminário promovido pelo deputado Rui Falcão (PT-SP), na Câmara dos Deputados, sobre os militares.

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É verdade que o rearmamento onera o orçamento nacional e seu ônus é sempre mais sentido quanto maiores forem as deficiências dos equipamentos sociais. O cientista político Oliveiros S. Ferreira nos deixou uma resposta sobre a necessidade das Forças: “Para constituir um Dispositivo Estratégico de Dissuasão, única maneira capaz de impedir que haja, na região, alterações territoriais que ameacem nossas fronteiras, ou que algum Estado vizinho decida resolver pendências adormecidas mediante o recurso à força armada.”

O historiador Manuel Domingos Neto no seminário Forças Armadas e política: limites constitucionais, feito pela CCJ, na Câmara do Deputados Foto: Reprodução/Estadão

Todos concordam ser preciso que tal dispositivo seja composto por profissionais, pois só assim terá qualificação técnica para a guerra moderna. A necessidade das Forças Armadas não se mede pelo grau de probabilidade, mas pela possibilidade de irrupção de um conflito. É estranho o esquecimento dessa lição quando a guerra reaparece na Europa e não há evidências de que a ação diplomática baste para a resolução de disputas entre as nações. Ainda que seja apenas como “política de prestígio”, é preciso estar preparado para a eventualidade da guerra. E, infelizmente, nem sempre a solução está na Base Industrial de Defesa.


PS: Após a publicação deste texto, a coluna foi procurada pelo Exército, que forneceu uma informação e um esclarecimento. A informação é sobre o plano da Força de substituir os rádios Harris por um projeto próprio, feito pela Imbel. O esclarecimento é a afirmação de que a licitação não obedecerá a critérios geopolíticos. Ambos foram incluídos no texto.