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Ministério da Justiça sob Dino deixou de declarar terras indígenas reconhecidas pela Funai

Pasta alega que só conseguiu montar a estrutura que realiza a revisão dos processos de demarcação em outubro do ano passado, quando o Ministério dos Povos Indígenas enviou dez procedimentos para análise do MJ

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Foto do author Weslley Galzo
Atualização:

BRASÍLIA – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciou o seu terceiro mandato com a promessa de homologar, até 2026, todas as demarcações de terras indígenas pendentes de avaliação final. A meta ambiciosa nada avançou no primeiro ano da gestão petista. O Ministério da Justiça, sob a chefia de Flávio Dino, não expediu nenhuma portarias declaratórias – a última etapa técnica antes do envio para a Presidência. A pasta, porém, recebeu 23 processos do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para serem analisados.

A portaria declaratória faz uma espécie de revisão dos procedimentos realizados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) desde a fase de reconhecimento das comunidades. Quando o processo chega ao Ministério da Justiça, a pasta tem o prazo de 30 dias para declarar os limites da área e determinar sua demarcação física, ou desaprovar a identificação. Porém, de acordo com especialistas, os prazos são historicamente desrespeitados.

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Com isso, Dino deixará para o seu sucessor no Ministério da Justiça, Ricardo Lewandowski, todos os processos originados no atual governo que estão pendentes de análise ministerial e encaminhamento para a Presidência. Existem, ao todo, atualmente, 48 terras indígenas delimitadas que aguardam a expedição de portaria declaratória, de acordo com dados da Funai.

O Ministério alega que “só foi dotado da estrutura necessária para a realização das análises dos processos no final de outubro”. Foi quando Lula assinou um decreto que definiu a quantidade de cargos comissionados que a pasta teria direito. Mas, desde junho do ano passado, a equipe da Justiça já contava com a atribuição de validar os estudos realizados pela Funai.

Lula assinou no seu primeiro dia de governo uma medida provisória que, dentre outras modificações, transferiu da pasta da Justiça para o então recém-criado Ministério dos Povos Indígenas a responsabilidade pela fase final das demarcações. Esse despacho se tornou motivo de disputa política, foi modificado pelo Congresso e acabou sancionado por Lula em junho do ano passado. O presidente validou a devolução à equipe de Dino da prerrogativa de “chancelar” e dar encaminhamento ao trabalho técnico desenvolvido pela Funai.

Procurada pela reportagem, a Funai informou ter feito o reconhecimento de 27 terras indígenas em 2023. Esses processos foram encaminhados ao MPI, que afirmou ter enviado 23 deles para o Ministério da Justiça. “Os demais seguem com o MPI cumprindo o rito processual necessário, garantindo a segurança e integridade dos processos para serem remetidos ao MJ”, disse em nota a pasta dos Povos Indígenas.

Dez desses procedimentos encaminhados pelo MPI a Dino ocorreram em outubro passado, logo após o Congresso aprovar a lei que criou o marco temporal para as demarcações. Ou seja, quase a metade dos territórios reconhecidos pela estrutura indigenista do governo chegou ao Ministério da Justiça no mesmo mês em que a equipe de Dino foi dotada da estrutura que alega ser necessária para avançar na análise dos processos

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Da esquerda para a direita, ministro Flávio Dino (Justiça), o presidente Lula, a ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas), Joênia Wapichana (presidente Funai) Foto: WILTON JUNIOR

O processo de demarcação de terras está no rol de prerrogativas exclusivas Poder Executivo. Todas as etapas transcorrem dentro da estrutura de governo: primeiro na Funai, com o reconhecimento do território, os estudos antropológicos e as contestações legais; depois no Ministério dos Povos Indígenas, onde é feita a revisão técnica; e, ao cabo, no Ministério da Justiça, que expede a portaria declaratória e encaminha o processo para a homologação presidencial. Ainda há uma avaliação preliminar da Casa Civil antes de o presidente determinar a demarcação das terras.

Quando esses documentos cumprem o trâmite burocrático e chegam ao gabinete presidencial, basta uma canetada do presidente para validar o direito territorial das comunidades aos locais reivindicados. Em 2023, Lula demarcou apenas 8 das 27 terras indígenas reconhecidas pelo seu próprio governo. Essas comunidades que tiveram os territórios demarcados são as mesmas que obtiveram a portaria declaratória do ministro da Justiça. São elas: Arara do Rio Amônia (AC), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS), Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Uneiuxi (AM), Avá Canoeiro (GO), Acapuri de Cima (AM) e Rio Gregório (AC).

“A gente vai ter que trabalhar muito para fazer a demarcação do maior número de terras indígenas. Não só porque é um direito de vocês, mas porque se a gente quer chegar em 2030 com desmatamento zero na Amazônia.”, prometeu Lula em abril de 2023 durante visita ao Acampamento Terra Livre, em Brasília. “Eu quero não deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de quatro anos. Esse é um compromisso que eu tenho e que eu fiz com vocês antes da campanha”, enfatizou.

Para o coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas (Apin), Dinamam Tuxá, o número reduzido de portarias declaratórias emitidas e, por conseguinte, de terras indígenas demarcadas no primeiro ano da gestão Lula está relacionado a pressões políticas do Congresso e de governadores de Estados em que há terras demarcáveis.

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Tuxá avalia que a correlação de forças desfavorável ao governo nessas áreas resultou na desaceleração do ritmo de demarcações. A percepção do coordenador da Apib é que a pauta indígena foi escanteada para viabilizar a aprovação de projetos de interesse do Planalto em outros segmentos. “Para além do rito, que já é moroso por si só, há também a politização. Esse número (de demarcações) poderia ser maior se não houvesse interferência política nesses processos”, disse.

“Nós fizemos um trabalho com a equipe de transição em que foi pactuado um maior número de demarcações, não só oito. O número era maior para os primeiros 100 dias (de gestão) e já não houve o cumprimento das metas pré-fixadas pelo próprio governo”, prosseguiu.

Durante a transição de governo, o grupo de trabalho dedicado ao tema mapeou a existência de 14 terras indígenas já demarcadas e em condições de serem homologadas pelo presidente a qualquer momento.

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“Nós acreditamos que era possível ter mais demarcações, inclusive para além da meta que foi pré-fixada. Esperávamos, como houve um comprometimento do presidente, demarcar o maior número de terras possível, tendo em vista que os dados mostram a existência de (territórios) reservados para serem demarcados”, completou.

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