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Afinal, as fotografias de Arne Svenson são voyeurismo ou arte?

Embora a lei de NY proíba o uso não autorizado da imagem de uma pessoa, há uma exceção para a arte; série fotográfica ‘The Neighbors’ causa polêmica há uma década

Por Arthur Lubow

Quando ‘The Neighbours’ (’Os Vizinhos’, em português), a série fotográfica de Arne Svenson, foi exibida pela primeira vez em Nova York, no ano de 2013, o alvoroço passou por cima das fotos. Os comentaristas da imprensa ficaram tão irritados com a forma como Svenson usara uma lente teleobjetiva para espiar as pessoas desavisadas que viviam do outro lado da rua em Tribeca – e publicar as imagens sem o consentimento delas – que era difícil julgar as fotos em termos artísticos.

Svenson, artista de sucesso, tropeçou no projeto depois de herdar uma imensa teleobjetiva de um amigo falecido que a usava para fotografar pássaros. Planejando vendê-la, ele achou que deveria testá-la primeiro. A lente era tão pesada que ele teve de aparafusá-la no tripé. Quando a apontou para uma parede de seu apartamento, a distância era muito curta para a distância focal.

Arne Svenson com seu gato, 'Monkey', em sua casa em Tribeca, em frente à janela de apartamento em que fez as fotografias originais de sua exposição.  Foto: Caroline Tompkins/The New York Times

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Um prédio tinha acabado de se erguer em frente ao dele, no que antes era um terreno baldio. Ele virou a lente para aquele lado e viu uma mulher através da janela. “Me concentrei nela e, quando vi a clareza, não parei mais”, disse ele. Imediatamente obcecado, ele deve ter tirado umas duzentas fotos. Ninguém nunca notou, exceto um Boston terrier que o olhou com curiosidade. Ele também nunca pensou em como as pessoas retratadas iriam reagir se soubessem.

“Muitos artistas – e acho que isso é uma benção – ficam completamente alheios às consequências de suas ações”, lembrou Svenson, agora com 70 anos, durante uma entrevista recente. “Se alguma vez cheguei a pensar em quais seriam as reações das pessoas, acho que de alguma forma pensei que elas ficariam felizes”.

Não foi o que aconteceu, principalmente quando ele expôs as fotos na Julie Saul Gallery, em Manhattan. Uma década se passou. Em 2016, um amargo processo judicial movido por algumas das pessoas fotografadas que o acusaram de invadir sua privacidade foi decidido a favor de Svenson. O juiz de apelação considerou que, embora a lei do estado de Nova York proíba o uso não autorizado da imagem de uma pessoa para publicidade ou comércio, há uma exceção para a arte. Pelo menos legalmente, as fotografias de Svenson são caracterizadas como arte.

Foto na mostra 'The Neighbors', de Arne Svenson, em 2013 Foto: Eduardo Munoz/Reuters

Mas são boa arte? Uma exposição de doze dessas fotos na James Danziger Gallery em Santa Monica, Califórnia, até 22 de abril, nos permite, com a distância do tempo e da geografia, fazer um julgamento imparcial. Em sua iluminação e composição formal, as imagens são belas. E, em seu exercício descarado do olhar voyeurista, desconcertantes e arrebatadoras.

Svenson ainda mora no apartamento de Tribeca onde fez as fotos. Fotógrafo de arte autodidata, costuma trabalhar em sequências e antes da exposição de 2013 realizou mostras individuais na Grey Art Gallery, em Nova York, e no Andy Warhol Museum, em Pittsburgh. “Desde que peguei uma câmera, nunca consegui satisfazer as questões que tenho com uma única imagem”, lembrou ele em janeiro. “Tudo para mim é uma faceta de prisma, cada lado que você vira parece diferente”.

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Ele disse que parte do que o atraiu para o projeto foi perceber como as esquadrias de metal dividiam as janelas em seções retangulares. “Parece uma coisa de Mondrian, e você pode isolar diferentes atividades dentro de um quadrante”, disse ele. “O que você não vê é muito mais poderoso do que o que você vê. Meu trabalho é dar a você a frase de abertura, e aí você tem que trabalhar. É por isso que o recorte é tão importante. É preciso recortar o que completa a história. Se você tem um cachorro abanando o rabo, corte o cachorro ou o rabo. Não mostre os dois”.

Exposição 'The Neighbors', de Arne Svenson, em 2013 Foto: Eduardo Munoz/Reuters

Logo no início, ele decidiu que se concentraria na poeira e nas listras nas janelas, não nas pessoas atrás do vidro. Como resultado, os retratados geralmente ficam meio indistintos, o que lhes confere um caráter pictórico. Uma mulher vista por trás, com cabelos presos e um elegante vestido preto, está se levantando de uma cadeira azul (ou talvez se sentando). Como a lente está focada na superfície da janela, a imagem, com sua superfície sedutoramente manchada, traz uma textura de desenho em papel. Na verdade, por causa de seu tema, evoca comparações as mulheres surpreendidas no banho por Degas, aquele consumado praticante do olhar masculino, que disse querer que seus quadros lembrassem algo que se vê “pelo buraco da fechadura”.

Embora Svenson negue qualquer componente erótico em suas fotografias, o frisson da escopofilia inequivocamente as anima. Isso fica evidente na foto de um jovem dormindo no sofá, com alguns centímetros de pele nua expostos entre a camiseta e a calça jeans. Sua vulnerabilidade à penetração da câmera – e de nossos olhos – é um poderoso componente da imagem. E a proeminência das esquadrias não apenas adiciona um componente geométrico formal, mas também parece uma barreira defensiva que foi perfurada.

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O furor que recebeu essas fotos pouco antes da abertura da exposição em 2013 na Julie Saul Gallery levou equipes de imprensa a acampar na frente do prédio de Svenson. “Ficou muito insano”, disse ele. Embora as pessoas nas fotos não fossem facilmente reconhecíveis, elas responderam que se sentiram violadas.

“Muitas pessoas pensam, quando estão dentro de casa, que a janela é uma parede”, disse Svenson. “Entrei na sala sem ser convidado. Numa situação urbana, temos essas camadas de filtros empilhadas, como na lente de uma câmera. Você tem um filtro quando está passeando com o cachorro, outro quando está na rua para fazer compras. Talvez você não tenha filtros para ficar em casa”. Ao fotografar pessoas em suas residências, ele estava desrespeitando uma convenção que permite que moradores urbanos coexistam em estreita proximidade com a ilusão compartilhada de privacidade pessoal.

Foto da exposição 'The Neighbors', de Arne Svenson, em 2013. Foto: Eduardo Munoz/Reuters

Na maioria das fotografias de pessoas flagradas sub-repticiamente em espaços públicos, o artista busca expressões faciais nuas, desmascarando a auto-apresentação social. Os retratos disfarçados de Walker Evans no metrô (que ele esperou 25 anos para publicar) e as francas “Heads” da Times Square de Philip-Lorca diCorcia (que incitaram um processo fracassado muito parecido com o que se moveu contra Svenson) se enquadram nessa categoria. As fotos de Svenson são diferentes. “Eu não estava olhando para rostos”, disse ele.

Uma mulher enrolando uma longa mecha de cabelo na penumbra de uma luminária de chão é um noturno de bege e marrom digno de Whistler – a linda cena não fornece nenhuma informação sobre a retratada. Uma mulher com uma toalha na cabeça poderia ser a Moça com Brinco de Pérola de Vermeer – se ela não estivesse olhando para o celular.

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No entanto, as fotos têm um cheiro de transgressão – aquele tom de bisbilhotice que marca a Janela Indiscreta de Hitchcock. Quando os fotógrafos de rua flagram seus modelos despercebidos em espaços públicos, alguns críticos objetam que a prática tem muitas implicações éticas. É muito mais problemático observar pessoas relaxando em casa?

A imagem que desencadeou a tempestade de litígios é de uma mãe segurando sua filha. Por causa da insegurança jurídica, Svenson a excluiu do livro de 42 imagens que publicou em 2015. Antes de conseguir a foto tão cobiçada, ele esperou muito tempo para que o cabelo da criança caísse numa cascata dourada. “Eu precisava que ela fosse um querubim caindo, porque foi isso que vi”, disse ele.

Mas agora ele pode enxergar seu trabalho de maneira diferente de quando estava no calor da controvérsia. “Era difícil separar a angústia das imagens”, disse ele. “Foi só recentemente que pude vê-las sem o efeito desencadeador da ansiedade. Estou muito feliz por tê-las de volta comigo”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times./TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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