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Livros encadernados com pele humana: Um dilema ético para bibliotecas e pesquisadores; entenda

Desde que a Universidade de Harvard anunciou que havia removido a encadernação de pele de um livro notório, o debate sobre livros antropodérmicos está em alta. Especialistas avaliam cenário e ponderam sobre equilíbrio entre pesquisa e respeito

Por Jennifer Schuessler (The New York Times) e Julia Jacobs (The New York Times)

NYT - A Feira Internacional de Livros Antiquários de Nova York é o local ideal para passear por alguns dos livros raros mais primorosos do mercado. O evento deste ano, realizado no início de abril, contudo, talvez tenha deixado alguns visitantes atônitos com um item pequeno e acinzentado: um livro encadernado em pele humana.

O livro, que mede cerca de 7 por 12 centímetros, vinha com um preço de US$ 45 mil (pouco mais de R$ 234 mil, na cotação atual) – e uma história conturbada. De acordo com a declaração dos proprietários, a encadernação fora encomendada em 1682 por um médico e anatomista italiano identificado como Jacopo X e, desde então, está em posse de seus descendentes.

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A lenda que corre na família diz que, durante uma dissecação, Jacopo reconheceu a morta como uma atriz que ele tinha visto em uma apresentação de Le Baron d’Albikrac, uma comédia de Thomas Corneille. Ele sabia que os corpos não identificados que acabavam vendidos às escolas de medicina raramente – ou nunca – recebiam um enterro digno. Assim, ele removeu um pedaço de pele e o usou para encadernar uma cópia da peça.

“A ideia é que se trataria de uma homenagem”, explicou o negociante de arte Ian Kahn aos visitantes reunidos no balcão de seu estande, antes de pegar o livro para as pessoas darem uma olhada mais de perto.

Um pequeno livro do século 17 encadernado com pele humana em frente a volumes cobertos com materiais convencionais, na Feira de Livros Antiquários de Nova York, em Manhattan, em 5 de abril de 2024. Foto: Jeenah Moon/The New York Times

Os livros encadernados em pele humana – e as histórias extraordinárias que os acompanham – há muito ocupam um lugar estranho nos arquivos do mundo dos livros raros. Ao longo dos anos, eles foram cercados por sussurros, vanglórias e piadas.

Mas, na última década, a conversa mudou. Muitas instituições com tais livros em suas coleções passaram a restringir o acesso, pois se viram inesperadamente envolvidas no mesmo debate sobre a exposição – ou até mesmo a propriedade – de restos humanos que se espalhou pelos museus.

A conversa foi sacudida uma vez mais no mês passado, quando a Universidade de Harvard anunciou que havia removido a encadernação de pele de um livro notório e que iria procurar “uma destinação final respeitosa”. A universidade também pediu desculpas por “falhas em seus cuidados”, que, segundo a instituição, “objetivaram e comprometeram ainda mais a dignidade do ser humano cujos restos mortais foram usados” para a encadernação.

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O anúncio foi parar em manchetes do mundo todo. Até agora, as reações dos especialistas em livros raros têm sido discretas – e variadas.

“Foi uma atitude ousada publicar um comunicado à imprensa não apenas sobre a presença de livros com pele humana, mas sobre uma forma potencialmente controversa de lidar com a questão”, disse Allie Alvis, curadora do Winterthur Museum, Garden & Library, em Delaware. Muitas instituições, disse Alvis, não estão dispostas a falar muito a respeito.

Mas outros estão preocupados com o que consideram a destruição de um artefato histórico e a imposição de sensibilidades do século 21 a objetos de diferentes épocas e contextos.

Megan Rosenbloom, ex-bibliotecária e autora do livro Dark Archives [algo como “Arquivos sombrios”, em tradução livre], um estudo sobre a história e a ciência dos livros antropodérmicos (ou encadernados em pele), disse que destruir ou eliminar esses objetos acabaria com futuras bolsas de pesquisa e novas possibilidades de compreensão.

O livreiro Ian Kahn, que estava oferecendo um pequeno livro do século 17 encadernado com pele humana para a empresa Lux Mentis, na Feira de Livros Antiquários de Nova York, em Manhattan, em 5 de abril de 2024.  Foto: Jeenah Moon/The New York Times

“Devemos tratar esses livros da maneira mais respeitosa possível, mas, ao mesmo tempo, tentar não enterrar, literal e figurativamente, o que aconteceu com essas pessoas”, disse ela. “É arrogância pensar que chegamos ao fim da evolução da forma como pensamos sobre os restos humanos”.

E ações como a de Harvard, acrescentou Rosenbloom, podem sair pela culatra.

“Se todos os livros antropodérmicos forem retirados das instituições”, disse ela, “o restante desses livros no mercado privado provavelmente irá para a clandestinidade, onde poderão ser tratados com menos respeito”.

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Rumores e insinuações

Relatos sobre livros encadernados em pele humana circulam há séculos. Mas a possibilidade de confirmá-los cientificamente – usando uma técnica chamada “rastro peptídico” – tem apenas uma década.

Em 2015, Rosenbloom e outros iniciaram o Anthropodermic Book Project, com o objetivo de descobrir “as verdades históricas por trás dos rumores”. Até o momento, o projeto identificou 51 supostos exemplos em todo o mundo, 18 dos quais foram confirmados com encadernação em pele humana. Outros 14 foram desmentidos.

Um número desconhecido de outros volumes está em bibliotecas particulares. Kahn, cuja empresa, Lux Mentis, lida com uma grande quantidade de “material desafiador”, como ele diz, disse que conhece vários colecionadores em Paris que possuem livros encadernados em pele.

Os exemplos mais antigos de que se tem notícia são três Bíblias do século 13 hoje no acervo da Bibliothèque Nationale, na França. A maior quantidade data da era vitoriana, apogeu do colecionismo anatômico, quando os médicos às vezes mandavam encadernar tratados e outros textos científicos em pele de pacientes ou cadáveres.

Outros exemplares tem a ver com criminosos ou prisioneiros. No Royal College of Surgeons de Edimburgo, na Escócia, uma exposição sobre o crescimento da profissão médica no século 19 apresenta um pequeno caderno supostamente encadernado com a pele de William Burke, parte de uma dupla de notórios assassinos em série que vendiam os corpos de suas vítimas para dissecção. O Boston Athenaeum possui um exemplar encadernado com a pele de um homem que, antes de morrer na prisão, tinha pedido que duas cópias de suas memórias e confissões no leito de morte fossem encadernadas com sua pele.

Um pequeno livro do século 17 encadernado com pele humana na Feira de Livros Antiquários de Nova York, em Manhattan, em 5 de abril de 2024.  Foto: Jeenah Moon/The New York Times

Embora a maioria das encadernações de pele conhecidas sejam da Europa ou da América do Norte, algumas envolvem alegações mais disparatadas, como um livro na Biblioteca Newberry, em Chicago, que se diz ter sido “encontrado no palácio do rei de Deli” durante o motim de 1857 contra o domínio britânico. O exame de laboratório, de acordo com a biblioteca, concluiu que na verdade se tratava de uma pele de “cabra altamente polida”.

“Muitas vezes, esses livros dão uma sensação de alteridade”, disse Alvis, curadora do Winterthur Museum, que posta sobre livros raros nas redes sociais como @book_historia. “Eles não vêm de uma pessoa branca e nobre, mas de pessoas desconhecidas de lugares estrangeiros.”

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Os testes atuais não conseguem identificar a raça ou o sexo da pele. Mas pelo menos meia dúzia de exemplos do século 19 são de pele supostamente retirada de cadáveres ou de pacientes do sexo feminino por médicos do sexo masculino – em vários casos, para cobrir livros sobre biologia ou sexualidade feminina (como um tratado sobre virgindade hoje no acervo da Wellcome Collection, em Londres).

Além disso, alguns exemplos – tanto supostos quanto confirmados – têm ligações raciais que, quaisquer que tenham sido os motivos por trás das encadernações, hoje podem ser desconfortáveis.

Confirmou-se que dois volumes de poemas de Phillis Wheatley, a primeira pessoa de ascendência africana a publicar um livro nos Estados Unidos, foram encadernados em pele humana. Mas um caderno de bolso da Wellcome Collection que há muito se alegava ter sido encadernado com a pele de Crispus Attucks – homem de ascendência negra e nativa reconhecido como a primeira pessoa a morrer pela independência americana – provavelmente está encadernado em pele de camelo, cavalo ou cabra, segundo o museu.

Uma ‘mulher violada’?

O volume guardado em Harvard – um tratado filosófico de 1879 chamado Des Destinées de L’Ame, ou “O Destino das Almas” – foi encadernado por um médico francês chamado Ludovic Bouland, que inseriu uma nota dizendo que “um livro sobre a alma humana merecia ter uma encadernação humana”. O item foi doado à Biblioteca Houghton da Universidade de Harvard em 1934 por John Stetson, herdeiro da fortuna da indústria do chapéu, juntamente com outra nota dizendo que a pele pertencia a uma mulher que morrera em um hospital psiquiátrico.

De acordo com Harvard, as lendas da biblioteca afirmam que “décadas atrás”, o livro às vezes era usado para assustar estudantes desavisados. Mas em 2014 surgiram questionamentos sobre a direção da biblioteca, depois que a instituição publicou uma postagem humorística descrevendo o laudo que confirmava a presença de pele humana como “boas notícias para os canibais”.

Paul Needham, proeminente especialista em livros raros que se aposentou da Universidade de Princeton em 2020, ficou profundamente ofendido e começou a pedir a Harvard que removesse a pele e lhe desse um “enterro respeitoso”.

“Acho que a forma como a Biblioteca Houghton tratou o assunto foi um desserviço ao mundo da coleção de livros raros”, disse ele.

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A biblioteca impôs algumas restrições ao acesso em 2015. Os ventos mudaram ainda mais em 2021, quando Harvard formou um Comitê sobre Restos Humanos para examinar todas as coleções, como consequência de seus esforços para enfrentar suas relações históricas com a escravidão.

A Feira de Livros Antiquários de Nova York, onde um livreiro estava oferecendo um livro do século 17 encadernado com pele humana, em Manhattan, em 5 de abril de 2024.  Foto: Jeenah Moon/The New York Times

Um único livro encadernado em pele, da França do século 19, pode parecer uma coisa pequena em meio aos mais de 20 mil restos mortais humanos nas coleções de Harvard, entre eles 6.500 de nativos americanos, que os críticos dizem que não estão sendo pesquisados e repatriados com suficiente rapidez.

Mas, para Needham, que participou da criação de um grupo para pressionar Harvard a enterrar a pele do que o grupo caracterizou como “a mulher violada e presa na encadernação”, o imperativo moral está claro: em termos éticos, mais importante que a pesquisa é a destinação digna dos restos mortais humanos, sobretudo quando a pessoa não deu consentimento.

“Daqui a cem anos, que outra pesquisa poderia ser feita?”, disse Needham. “Eu simplesmente não consigo imaginar.”

A decisão de Harvard está chamando mais atenção para os volumes encadernados com pele em outros lugares, como um item na Biblioteca Pública de Cleveland: uma edição de 1867 do Alcorão, adquirida em 1941 de um negociante que a descreveu como “propriedade do chefe árabe Bushiri ibn Salim, que se revoltou contra os alemães em 1888″.

Durante décadas, o livro recebia não mais que um punhado de solicitações de acesso por ano, disse John Skrtic, diretor de coleções da biblioteca. Mas, no início deste ano, a biblioteca impediu o acesso, aguardando testes.

“A biblioteca há muito acredita que a afirmação não documentada no catálogo do revendedor, no que diz respeito à encadernação, é falsa e considera a alegação sensacionalista e profundamente ofensiva”, disse a Biblioteca Pública de Cleveland em comunicado. A biblioteca “consultará os líderes da comunidade muçulmana local para traçar um caminho ético a seguir”.

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A abordagem de Harvard também está gerando fortes críticas. Eric Holzenberg, um estudioso de livros que recentemente se aposentou como diretor do Grolier Club, em Manhattan, disse que a destruição da encadernação “não resolve nada”, além de expressar desaprovação quanto aos “atos de pessoas mortas há muito tempo”.

“Harvard, ao que me parece, escolheu o caminho mais fácil”, disse Holzenberg. “Sem dúvida, é uma abordagem adequada, cautelosa, colegiada e avessa a riscos, mas, em última análise, temo que às custas de bons programas de bolsas de estudo e de uma administração responsável.”

Rosenbloom, autora de Dark Archives, disse questionar a tendência de enquadrar esses objetos, que geralmente não foram criados ou recolhidos em um contexto de colonialismo, em modelos desenvolvidos para resolver essas injustiças. E ela se perguntou por que Harvard tinha removido a encadernação antes de concluir a pesquisa completa sobre a proveniência.

Em resposta a perguntas enviadas por e-mail, Thomas Hyry, diretor da Biblioteca Houghton, e Anne-Marie Eze, bibliotecária associada, disseram não acreditar que o desmantelamento da encadernação virá a limitar pesquisas futuras.

“As decisões que tomamos para remover os restos humanos de nosso volume não apagarão o que sabemos sobre essa prática para aqueles que estudam a história do livro”, disseram eles.

Equilíbrio entre pesquisa e respeito

Algumas bibliotecas que fizeram uma análise ética de seus livros antropodérmicos chegaram a conclusões diferentes.

A Biblioteca John Hay da Brown University tem quatro livros confirmados como encadernados em pele humana, entre eles uma edição do atlas anatômico de Andreas Vesalius, On the Structure of the Human Body [”Sobre a estrutura do corpo humano”], de 1543. No passado, eles eram promovidos em passeios pelo campus e, às vezes, levados para o Halloween e outros eventos.

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Mas em 2019, a nova diretora da biblioteca, Amanda Strauss, cancelou toda e qualquer exibição dos livros, ao mesmo tempo que desenvolveu políticas que equilibravam o respeito pelos restos mortais humanos com os programas de pesquisa da biblioteca.

“Não queremos censurar o acesso a material controverso ou perturbador”, disse ela. “E não queremos censurar ninguém pelo interesse nesse material.”

O livreiro Ian Kahn, à direita, que estava oferecendo um pequeno livro do século 17 encadernado com pele humana para a empresa Lux Mentis, conversa com alguém presente na Feira de Livros Antiquários de Nova York em Manhattan, em 5 de abril de 2024.  Foto: Jeenah Moon/The New York Times

Atualmente, imagens das páginas dos livros (mas não das encadernações) estão disponíveis online, enquanto o acesso aos livros físicos é limitado a pessoas que fazem pesquisas sobre ética médica ou encadernações antropodérmicas.

Strauss disse que não se sentiria à vontade com qualquer alteração ou destruição das encadernações, o que, segundo ela, equivaleria a um “apagamento”.

“Não podemos fingir que isso não era uma prática e que não aconteceu”, disse ela. “Porque aconteceu, e temos as provas.”

Com qualquer objeto macabro, às vezes é difícil traçar a linha entre a curiosidade mórbida e a busca por compreensão.

Kahn, o negociante de arte, disse que queria “desmistificar” os livros encadernados em pele, o que, segundo ele, pode levar a conversas sobre ética, conhecimento e nossa condição como animais. Na feira de livros, muitas pessoas pareciam abertas a essas perguntas e, embora com certa estranheza, interessadas em tocar o livro de Corneille.

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Uma das presentes, Helen Lukievics, advogada aposentada, disse que tinha estremecido ao ler sobre o livro de Harvard. Mas estava convencida, segundo ela, pela ideia de que essa encadernação em particular tinha sido feita como uma “homenagem” à atriz.

“É fabulosamente aterrorizante”, disse ela, com uma pausa. “É um pedaço da história.” / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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