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Opinião|Com Vitória de 'Mussum', Gramado põe em destaque o filme popular

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Aiton Graça e Vera Holtz com seus kikitos. Edson Vara/Pressphoto  

 

GRAMADO - Não deixa de ser uma surpresa a grande vitória de Mussum - o Films no 51º Festival de Cinema de Gramado, um dos mais importantes do País. No entanto, já havia sintomas de que o júri poderia entrar em sintonia com uma das falas mais fortes do evento - a da homenageada atriz Ingrid Guimarães. Artista cômica, ela apontou para os preconceitos contra as comédias, defendeu a volta da cota de tela e do reencontro do cinema nacional com seu público - no primeiro semestre o cinema brasileiro baixou a menos de 1% do total das bilheterias. 

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Dessa forma, há uma certa coerência em conceder o principal Kikito (prêmio do festival) a essa cinebiografia ficcional de uma figura muito conhecida e querida entre nós - o sambista e comediante Antonio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum (1941-1994). Além do mais, ao homenagear um artista negro, e com um filme dirigido, interpretado por pessoas pretas e contando com maioria de pretos em suas funções técnicas, Mussum atende a uma pauta identitária e antirracista, obrigatória nos festivais de cinema.

 Mussum - o Films levou as estatuetas de melhor filme, melhor ator para Ailton Graça, melhor atriz coadjuvante para Neusa Borges, melhor ator coadjuvante para Yuri Marçal, melhor trilha musical e melhor filme pelo júri popular, além de uma menção honrosa. 

Entra em cartaz nos cinemas dia 2 de novembro. E então terá sua prova de fogo, na relação direta com o público mais amplo. Nessa espécie de laboratório, que é um festival de cinema, passou no teste, e com louvor. 

Além de Mussum, os grandes vencedores do festival foram Tia Virgínia, com melhor atriz (Vera Holtz), roteiro (Fábio Meira), direção de arte (Ana Mara Abreu), som (Rubén Valdés), Prêmio da Crítica (ACCIRS-Abraccine), menção honrosa (para a atriz Vera Valdez) e Mais Pesado é o Céu", de Petrus Cariry (Ceará), com melhor direção, melhor fotografia (Petrus Cariry), montagem (Firmino Holanda e Petrus Cariry), prêmio especial do júri (à atriz Ana Luiza Rios).

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O que são esses filmes? 

Mussum, o Filmis, dirigido por Silvio Guindane, busca, claramente, diálogo com o público brasileiro. Que, aliás, anda bastante reticente em relação ao cinema nacional. Sem cota de tela, a produção cinematográfica do país chegou ao nível residual de menos de 1% de ocupação do mercado. Nível que, se não é histórico (provavelmente na era Collor foi pior), está entre os piores já registrados desde que a medição da ocupação das telas começou. 

A ideia de buscar uma figura muito popular como Mussum (Antonio Carlos Bernardes Gomes) leva a um desenvolvimento cinematográfico tão competente quanto simples. Guindane não inventa, e nota-se o capricho da produção. A começar pela excelente escalação de elenco, pondo em cena atores e atrizes como Ailton Graça, Cacau Protásio e Neusa Borges, entre outros. 

Também aposta nos sentimentos básicos do espectador, formatando-se como "dramédia", como bem assinalou Ailton Graça, que interpreta, com brilho, Mussum na fase adulta do personagem. Ou seja, um mix de drama com comédia, como faziam diretores como Dino Risi e Mario Monicelli no auge da chamada commedia all'italiana. Faziam graça durante quase toda a duração da obra e terminavam com uma pancada no espectador. 

Outra preocupação do filme é mostrar o, digamos, lado oculto de uma personalidade pública. Infância pobre, início de carreira militar, vocação musical no conjunto Originais do Samba, depois lançado à comédia primeiro por Chico Anysio e depois por Renato Aragão, mentor do grupo Os Trapalhões, dono de imenso sucesso na TV e no cinema. Com sua simpatia, Mussum fazia o tipo engraçado, malandro, e cuja marca registrada era transformar palavras terminadas em "e" em "is". Parece que esse bordão foi inventado por Chico Anysio e depois expandido para um vocabulário mais amplo pelo próprio Mussum. 

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Para resumir, o filme tem muito samba, muita graça e algumas situações dramáticas, como aquela da morte da mãe do protagonista. Em sua simplicidade, é uma obra feita para rir e para chorar, que é o que a maior parte do público vai buscar no cinema. Rir faz bem e emocionar-se também, queiram ou não. 

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Tia Virginia, de Fábio Meira foi muito aplaudido em sua sessão do festival. Aliás, em algumas ocasiões, foi aplaudido em cena aberta, tal o encantamento do público com certas situações cômico-dramáticas, momentos estupendos de Vera Holtz. Ela é a Tia Virgínia, a protagonista da história. Mulher madura, ficou para titia para cuidar da mãe, inválida (Vera Valdés). 

O filme é enganoso. Começa com Virgínia passando vários minutos a dar corda em um velho relógio. Olhamos para um relógio antigo e o que vemos? O tempo. O tempo passou para Virgínia, ela perdeu a vida, não realizou seus sonhos. 

Mas isso iremos descobrindo aos poucos, até chegarem suas duas outras irmãs, Louise Cardoso e Arlette Salles. Estas são bem-sucedidas. Viajaram, casaram, tiveram filhos. Virginia ficou para titia. Para cuidar da mãe. 

Histórias de ressentimentos familiares são comuns no cinema. A mais radical que conheço é Parente É Serpente, comédia dramática de Mario Monicelli. A situação é parecida, mas não igual. Em Monicelli, os pais estão idosos demais para cuidarem de si mesmos. Algum dos filhos terá de se sacrificar para se ocupar dos velhos. A velhice pode ser um peso. E não apenas para os velhos. O desfecho de Monicelli é radical, como ele próprio era. Basta lembrar que, com mais de 90 anos, ao saber que tinha câncer de próstata, não pestanejou e atirou-se de uma janela do hospital. 

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Em Tia Virgínia as coisas são mais sutis. Depois daquele prólogo com o relógio vamos aos poucos conhecendo a casa. Uma casa enorme, retirada, em que vivem Virgínia e a mãe. Uma empregada ajuda no serviço. Os cômodos são atulhados de objetos, como costumam ser as casas antigas. Ninguém joga as coisas fora e eras geológicas de objetos sem uso vão sendo acumuladas, umas sobre as outras. 

Até que chegam as irmãs. Vieram para a ceia de Natal. Enquanto preparam a comida, vão conversando. Os ressentimentos vão aparecendo. E se tornando agudos. Disse no começo que o filme é enganoso. E é. Parece, de início, ele próprio algo velho, antiquado mesmo. Mas é um ardil. As coisas vão se modificando com as conversas entre irmãs e os conflitos afloram. Voltarão a ficar reprimidos, como às vezes acontece com as diferenças familiares? Assistam a Tia Virgínia e verão. 

A mise-en-scène de Meira (autor também de As Duas Irenes) é muito competente ao fazer subir a pressão sem entornar o caldo de vez. Pelo menos até certo ponto. Age de maneira controlada e prepara o desfecho, uma verdadeira epifania. 

As gradações de tensão ajudam a contar a história. Frustrada, Virgínia se apega a um raro momento de glória em sua vida pregressa - quando trabalhou na encenação de A Casa de Bernarda Alba. Uma única apresentação, segundo Tia Virgínia, mas muito aplaudida. Eis aí a referência para o filme - o drama de García Lorca, o último de sua trilogia. A reclusão das filhas, com a mãe viúva, na casa de família onde a tensão cresce até ao limite do insuportável. Lorca morreu fuzilado pelos fascistas. 

Esse mote e uma performance ao som do Bolero de Ravel preparam o ambiente para o solo magnífico de Vera Holtz. 

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Em Mais Pesado é o Céu, longa assinado por Petrus Cariry, temos em cena dois seres errantes - Tereza (Ana Luiza Rios), que carrega um bebê nos braços. E Antonio de Lucena (Matheus Nachtergaele) que pede carona para alcançar o Maranhão e se reunir a um amigo num mirabolante negócio de caranguejos. Acabam reunindo as duas caminhadas e alcançam uma espécie de bar comandado por uma figura benigna interpretada por Sílvia Buarque. 

O filme tem a excelência visual conhecida de Petrus Cariry, que além de dirigir assume a direção de fotografia. O elenco é de primeira. E a história deslancha bem, com cenas pontuais marcantes da dupla protagonista. Fazem o que podem para sobreviver no ambiente hostil onde não existe um trabalho decente e minimamente remunerado. A cidade engolida pelas águas é apenas uma lembrança de tempos melhores. A realidade agora é outra, e muito mais dura. 

Optando por um recorte realista, porém pontuado de momentos poéticos, o filme se encaminha para um desfecho duro, mas que, mesmo assim, acaba surpreendendo o público por sua crueza e intensidade. A reação, no cinema, foi de espanto. E explica a reação gélida dirigida à obra, no entanto bem reconhecida pelo júri. 

Além desses três vencedores, há que se destacar as outras categorias. O documentário "Anhangabaú", de Lufe Bollini, e o longa-metragem gaúcho "Hamlet", de Zeca Brito, foram os melhores filmes em suas mostras.

Entre os longas-metragens gaúchos, o destaque foi o filme "Hamlet", de Zeca Brito, que levou cinco Kikitos: melhor filme, melhor direção, melhor ator para Frederico Restori, melhor fotografia e melhor montagem. 

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PRÊMIOS DO 51º FESTIVAL DE CINEMA DE GRAMADO:

 

Longas-metragens Brasileiros 

Melhor Filme: "Mussum, O Filmis", de Silvio Guindane

Melhor direção: Petrus Cariry, por "Mais Pesado é o Céu"

Melhor ator: Aílton Graça, por  "Mussum, O Filmis"

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Melhor atriz: Vera Holtz, por "Tia Virgínia"

Melhor Roteiro: Fábio Meira, por "Tia Virgínia"

Melhor Fotografia: Petrus Cariry, por "Mais Pesado é o Céu"

Melhor Montagem: Firmino Holanda e Petrus Cariry, por "Mais Pesado é o Céu"

Melhor Trilha Musical: Max de Castro, por "Mussum, O Filmis"

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Melhor Direção de Arte: Ana Mara Abreu, por "Tia Virgínia"

Melhor Atriz Coadjuvante: Neusa Borges, por "Mussum, O Filmis"

Melhor Ator Coadjuvante: Yuri Marçal, "Mussum, O Filmis"

Melhor Desenho de Som: Rubem Valdés, por "Tia Virgínia"

Prêmio especial do júri: Ana Luiza Rios de "Mais Pesado é o Céu"

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Menção Honrosa: Vera Valdez, por "Tia Virgínia"

Menção Honrosa: Martin Macias Trujillo, por "Mussum, O Filmis"

Júri da Crítica: "Tia Vírginia", de Fábio Meira

Júri Popular: "Mussum, O Filmis", de Silvio Guindane

 

Prêmio SEDAC/IECINE de Longas-metragens Gaúchos

Melhor filme: "Hamlet", de Zeca Brito

Melhor direção: Zeca Brito, por "Hamlet"

Melhor ator: Fredericco Restori, por "Hamlet"

Melhor atriz: Carol Martins, por "O Acidente"

Melhor roteiro: Marcelo Ilha Bordin e Bruno Carboni, de "O Acidente"

Melhor fotografia: Bruno Polidoro, Joba Migliorin, Lívia Pasqual e Zeca Brito, por "Hamlet"

Melhor direção de arte: Richard Tavares, de "O Acidente" 

Melhor montagem: Jardel Machado Hermes, de "Hamlet"

Melhor Desenho de Som: Kiko Ferraz, Ricardo Costa e Cristian Vaz, por "Céu Aberto"

Melhor trilha Musical: Rita Zart e Bruno Mad, por "Céu Aberto" 

Júri Popular: "Sobreviventes do Pampa", de Rogério Rodrigues

 

Longas-metragens Documentais

Melhor Filme: "Anhangabaú", de Lufe Bollini

 

Curtas-metragens Brasileiros

Melhor Desenho de Som: Kiko Ferraz, por "Sabão Líquido"

Melhor Trilha Musical: Mano Teko e Aquahertz, por "Yãmî-Yah-Pá"

Melhor Direção de Arte: Felipe Spooka e Jacksciene Guedes, por "Casa de Bonecas"

Melhor Montagem: Luiza Garcia, por "Camaco"

Melhor Roteiro: Fabiano Barros e Rafael Rogante, por "Ela Mora Logo Ali"

Melhor Fotografia: Morzanel Iramari, por "Mãri-Hi - A árvore do Sonho"

Melhor Atriz: Agrael de Jesus, por "Ela Mora Logo Ali"

Melhor Ator: Phillipe Coutinho, por "Sabão Líquido"

Prêmio Especial do Júri: "Mãri-Hi - A Árvore do Sonho"

Menção Honrosa: "Cama Vazia", de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet

Melhor Curta Júri da Crítica: "Camaco", de Breno Alvarenga

Melhor Filme pelo Júri Popular:  "Ela Mora Logo Ali', de Fabiano Barros e Rafael Rogante

Melhor Direção: Mariana Jaspe, por "Deixa"

Melhor Filme: "Remendo", de Roger Ghil

Prêmio Canal Brasil de Curtas: "Yãmî-Yah-Pá", de Vladimir Seixas

Mostra de Filmes Universitários

Melhor filme: Cabocolino, de João Marcelo.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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