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Dormir no escritório volta à moda no Vale do Silício e ‘regalias’ podem acabar

Recentemente, Musk enviou um e-mail para os funcionários do Twitter pedindo que eles se comprometessem com “expedientes longos” e de “alta intensidade”

Por Danielle Abril

THE WASHINGTON POST - O retorno do trabalho presencial no Twitter deu uma guinada e tanto depois da aquisição da plataforma por Elon Musk: uma funcionária tuitou “#SleepWhereYouWork” (Durma onde você trabalha, em tradução livre) junto com uma foto dela em um saco de dormir e usando uma máscara de dormir que viralizou nas redes.

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Recentemente, Musk enviou um e-mail para os funcionários do Twitter pedindo que eles se comprometessem com “expedientes longos” e de “alta intensidade”, além de serem “extremamente dedicados”, caso queiram continuar trabalhando lá. Os profissionais da empresa falida de criptomoedas, FTX, também passaram algumas noites dormindo no escritório, seguindo o exemplo do antigo CEO da empresa, Sam Bankman-Fried.

O foco no trabalho presencial e no sacrifício pessoal é uma inversão da cultura de trabalho do Vale do Silício, que foi a primeira a adotar opções permanentes de trabalho remoto e a promover as semanas de trabalho de quatro dias. Especialistas dizem que a mudança de rumo pode significar mais estresse, esgotamento e até mesmo uma crise existencial para os trabalhadores.

“É a ideia de que o trabalho não é apenas trabalho”, disse Carolyn Chen, autora de Work Pray Code: When Work Becomes Religion in Silicon Valley (Código de Oração do Trabalho: Quando o trabalho se torna religião no Vale do Silício, em tradução livre). “O trabalho é a sua razão de viver e o que lhe dá sentido, propósito e identidade. É a sua fonte de pertencimento.”

Colocar o trabalho acima de tudo desempenhou um papel importante na cultura dos jovens da região, proporcionando aos profissionais um modo de provar que são fortes, disse Carolyn.

Musk voltou atrás na exigência de retorno ao trabalho presencial depois que muitos funcionários do Twitter optaram por se demitir em vez de trabalhar sob as novas condições. Agora, o bilionário diz que eles podem continuar atuando remotamente desde que seus gestores considerem que estão tendo “um desempenho excelente”.

Elon Musk pediu que trabalhadores trabalhem por longas horas e com alta intensidade Foto: Mike Blake/Reuters

Se expedientes longos significam determinação real é um debate constante entre aqueles interessados em tecnologia no Twitter, e uma fonte de conflito entre gerações de trabalhadores do setor, gestores e funcionários, capitalistas de risco e todos os demais.

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Nos últimos anos, a ideia de ter uma rotina sem tempo para nada ganhou uma má reputação. Mas o Vale do Silício é o lugar onde muitas dessas tendências começaram. As empresas têm um histórico longo de aprovação pelas noites viradas programando ou pelos fins de semana no escritório como a principal forma de encontrar uma boa ideia para fundar uma startup, criar um novo recurso ou fechar um acordo.

O cofundador da Apple, Steve Jobs, deu força a esse estilo de trabalho, assim como o ex-CEO da Uber, Travis Kalanick, acreditando que o ambiente leva à inovação. Antes do Twitter, Musk tinha profissionais na Tesla trabalhando durante expedientes extenuantes de 12 horas para cumprir os prazos de produção. E ele mesmo ficou famoso por dormir na fábrica da montadora. Em novembro, Musk afirmou que também estava dormindo no Twitter.

As regalias nos escritórios do setor, como comida grátis e pebolim, foram pensadas para fazer com que não fosse nenhum esforço ficar mais tempo no trabalho. De certa forma, tais recursos ajudaram os trabalhadores a ter mais equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, pois era possível tanto lavar roupa como trabalhar no escritório. Porém, também significaram mantê-los acorrentados ao local de trabalho.

Os millennials, cansados da ideia de mulheres que dão conta de tudo e homens que são “os caras” da tecnologia, recusaram algumas dessas tendências. Agora, vários líderes do setor estão mais uma vez apregoando o apoio à ideologia.

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Dormir no escritório muitas vezes era visto como um motivo de orgulho nos locais de trabalho do Vale do Silício. A hoje desprestigiada fundadora da Theranos, Elizabeth Holmes, com frequência mencionava publicamente seus hábitos de sono – gabando-se de poder trabalhar durante longos períodos e precisar dormir apenas quatro horas. Da mesma forma, Bankman-Fried, ex-CEO da FTX, dizia que dormia quatro horas no pufe do escritório – embora seu local de trabalho estivesse localizado em uma cobertura nas Bahamas.

Empresas como Google e Uber criaram espaços para os trabalhadores cochilarem e instalaram “cápsulas para dormir” em seus escritórios. Elas tinham a esperança de que ao proporcionar um lugar para descansar isso aumentaria a produtividade.

Esther Crawford, diretora de gerenciamento de produtos do Twitter, é a funcionária que retuitou a foto que um de seus colegas tirou mostrando-a dormindo em um saco de dormir no chão do escritório. “Quando sua equipe está se esforçando dia e noite para dar conta dos prazos, às vezes você #Dormeondevocêtrabalha”, escreveu.

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Agora, outros no setor estão participando do debate pelo Twitter, alimentando a retórica.

“Para muitos, o trabalho é um salário para cuidar de si mesmos e de suas famílias”, tuitou o investidor anjo Jason Calacanis, que tem ajudado Musk a administrar o Twitter. “Para alguns poucos sortudos, trata-se de uma missão ou obsessão. Estou tranquilo em relação a isso e os fundadores também deveriam estar.”

E alguns sugerem que não existe essa coisa de conseguir encontrar o equilíbrio perfeito entre a vida pessoal e profissional.

Nos últimos anos, as empresas de tecnologia pareciam estar se afastando da promoção dessa cultura, vangloriando-se de regalias como permitir que as pessoas trabalhassem de qualquer lugar, adotando semanas de trabalho de quatro dias e investindo em iniciativas para a saúde mental. Durante a pandemia, muitas empresas deram prioridade à saúde e ao bem-estar e promoveram o equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal para reduzir os episódios de esgotamento.

O Twitter foi uma das primeiras empresas a se comprometer com o trabalho remoto de forma permanente poucos meses depois do início da pandemia. O ex-CEO da plataforma, Jack Dorsey, participava de retiros anuais de meditação de 10 dias no exterior e pensava em ir viver e trabalhar na África antes de mudar de planos por causa da pandemia.

Mas a economia colocou uma pressão sobre o setor de tecnologia que talvez obrigue as empresas a fazer mais com menos. Assim como o Twitter, centenas de empresas de tecnologia, inclusive nomes importantes como Meta e Amazon, demitiram dezenas de milhares de trabalhadores. E muitos líderes têm sugerido que planejam reduzir ou acabar com as despesas discricionárias.

“O crescimento (dos lucros) terá de vir com uma equipe menor, sobretudo com tanta incerteza no mercado”, disse Kyle Stanford, principal analista de capital de risco da PitchBook. “Infelizmente, isso vai levar a pedir mais dos trabalhadores.”

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Em um tuíte recente, a Founders Fund, empresa de capital de risco com sede em São Francisco, disse que pretendia investir em empresas “que acreditam no ‘futuro do trabalho’”, definindo o termo como a adoção do trabalho presencial, a crença no “trabalho árduo de verdade” e o foco em ganhar dinheiro.

As declarações recentes de Musk, combinadas com as mudanças econômicas no setor, também podem dar espaço para que mais empresas aumentem a pressão sobre os funcionários.

“Você precisa pensar no Vale do Silício como um ecossistema”, disse Carolyn. “As empresas competem entre si. Então, elas estão de olho no que o Twitter está fazendo.”

Chris Rice, sócio da empresa de recrutamento Riviera Partners, com sede em São Francisco, disse que os profissionais da tecnologia ainda têm opções e devem perguntar o que se espera deles, assim como informar o que desejam. Mas se estão à procura de um emprego permissivo e com luxos, talvez se deparem com uma resposta decepcionante. “Neste mercado atual, muitas empresas de tecnologia estão apertando os cintos”, afirmou. “Os candidatos não devem contar tanto com as regalias vistas com frequência nos últimos anos.” / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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