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EUA e China expandem suas operações globais de espionagem em caça arriscada por segredos

Países priorizam esforços de espionagem e contraespionagem para descobrir planos um do outro em meio a disputa global

Por Julian E. Barnes e Edward Wong

THE NEW YORK TIMES — Conforme o balão-espião da China vagueava pelos céus dos Estados Unidos, em fevereiro, as agências de inteligência americanas souberam que o presidente chinês, Xi Jinping, tinha se enfurecido com alguns mais graduados generais das Forças Armadas chinesas. As agências de espionagem de Washington vinham tentando entender o que Xi sabia e que ações ele adotaria quando o balão, originalmente destinado a sobrevoar as bases militares dos EUA em Guam e no Havaí, foi soprado para fora do curso.

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O presidente chinês não se opunha a operações de espionagem arriscadas contra os EUA, mas as agências americanas concluíram que o Exército de Libertação Popular só o informou a respeito do balão quando o equipamento já sobrevoava o território americano.

Autoridades dos EUA não revelaram como as agências de espionagem obtiveram esta informação. Mas detalhes expostos nesta reportagem em primeira mão mostram que, quando Xi soube da trajetória do balão e percebeu que o caso tiraria dos trilhos as conversas previstas com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, ele repreendeu generais estrelados por não o terem informado que o balão havia saído de sua trajetória prevista originalmente, de acordo com autoridades americanas cientes das informações de inteligência.

Imagem divulgada em 4 de fevereiro mostra destroços do balão próximo à costa da Carolina do Sul após ser abatido por um caça. Episódio gerou crise diplomática entre China e Estados Unidos Foto: Chad Fish / AP

O episódio joga luz sobre a altamente secreta — e em expansão — disputa de espionagem entre EUA e China. A crise do balão, uma pequena fração de um esforço chinês de espionagem muito maior, reflete uma nova agressividade insolente de Pequim na coleta de dados de inteligência dos americanos, assim como novas e crescentes capacidades de Washington em coletar suas próprias informações dentro da China.

Para Washington, os esforços de espionagem são um componente crítico da estratégia do presidente Joe Biden de conter a ascensão militar e tecnológica da China, em linha com seu pensamento de que Pequim representa o maior desafio a longo prazo ao poder dos EUA.

Para Pequim, a nova tolerância por novas ações corajosas das agências de espionagem chinesas é orientada por Xi, que ordenou seus militares a realizar movimentações agressivas ao longo das fronteiras do país e sua agência de inteligência a ser mais ativa em lugares mais distantes.

Os principais esforços de ambos os lados são destinados a responder às duas dúvidas mais difíceis: Quais as intenções do líder da nação rival? E que capacidades militares e tecnológicas ele domina?

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Autoridades americanas, a maioria falando sob condição de anonimato para discutir espionagem, enfatizaram em entrevistas a magnitude do desafio. A CIA tem foco em Xi, particularmente em suas intenções em relação a Taiwan. A força-tarefa de contrainteligência do FBI em todo o país intensificou sua caça por esforços chineses para recrutar espiões dentro dos EUA. Agentes americanos identificaram uma dúzia de incursões de cidadãos chineses em bases militares em solo americano nos últimos 12 meses.

Ambos os países apressam-se para desenvolver tecnologias próprias de inteligência artificial, o que eles consideram um fator crítico para manter vantagem militar e econômica, que dará às suas agências de espionagem novas capacidades.

Combinados, afirmam autoridades americanas, os esforços da China alcançam todas as facetas da segurança nacional, da diplomacia e das tecnologias avançadas comerciais dos EUA e de seu países parceiros.

Imagem de novembro de 2022 mostra o presidente chinês, Xi Jinping, ao lado do presidente americano, Joe Biden, em encontro em Bali, na Indonésia. Líderes tem aumentado campanhas de espionagem entre si Foto: Saul Loeb/AFP

A CIA e a Agência de Inteligência em Defesa estabeleceram novos centros com foco em espionar a China. As autoridades americanas aprimoraram suas capacidades de interceptar comunicações eletrônicas, incluindo com o uso de aviões-espiões próximos à costa chinesa.

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O conflito de espionagem com a China é ainda mais expansivo do que as contendas entre espiões americanos e soviéticos durante a Guerra Fria, afirmou o diretor do FBI, Christopher Wray. O tamanho da população e da economia da China possibilitou ao país construir serviços de inteligência maiores do que os americanos.

“A realidade é que, comparados à RPC, nós somos superados vastamente no contingente em campo, mas cabe a nós defender o povo americano aqui em nosso país”, afirmou Wray em entrevista, usando as iniciais da República Popular da China. “Eu considero que este é o desafio da nossa geração.”

A China vê diferente. Wang Wenbin, porta-voz do ministério chinês de Relações Exteriores, afirmou que “os EUA são o país n.º 1 em vigilância e têm a maior rede de espionagem no mundo”.

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‘Correndo atrás de tudo’

Espionagem é capaz de impedir que um país descambe para a guerra ou suavizar o caminho para negociações delicadas, mas também pode fazer nações optarem por conflitos armados ou causar cismas diplomáticos.

No fim de fevereiro, semanas após cancelar uma importante visita a Pequim em razão do episódio do balão, Blinken confrontou o mais graduado diplomata chinês com a informação de inteligência americana de que Pequim considerava fornecer armas à Rússia. Essa interação elevou as tensões, mas também pode ter evitado que a China enviasse as armas, afirmaram autoridades americanas. E quando Blinken finalmente foi a Pequim, em junho, ele mencionou atividades chinesas de inteligência em Cuba.

A China melhorou vastamente sua vigilância por satélites, e suas intrusões cibernéticas são o meio mais importante do país para coleta de inteligência, afirmam autoridades americanas. A frota de balões-espiões, apesar de muito menos sofisticada, permitiu à China explorar a zona não regulada do “espaço próximo”. E o governo americano alerta países aliados que as capacidades de vigilância eletrônica da China poderiam aumentar se as nações usarem tecnologia de empresas de comunicação chinesas.

Imagem divulgada em 5 de fevereiro mostra militares americanos recuperando destroços de balão chinês abatido nos EUA. Equipamento era utilizado para espionagem Foto: Marinha dos EUA/via AFP

Inteligência artificial é outro campo de batalha. O governo americano considera sua liderança em IA uma maneira de ajudar a compensar a força chinesa em números. Autoridades chinesas esperam que a tecnologia as ajude a confrontar o poderio militar americano, incluindo por meio de localização de submarinos americanos e do estabelecimento de domínio do espaço, afirmam autoridades americanas.

As autoridades americanas também estão mais preocupadas do que nunca com os esforços das agências chinesas de coletar inteligência por meio de contatos pessoais. Elas afirmam que a principal agência de espionagem chinesa, o Ministério da Segurança de Estado, tem como objetivo colocar agentes ou recrutar operadores dentro do governo dos EUA, assim como em empresas de tecnologia e da indústria de defesa.

Agentes chineses usam redes sociais — em particular o LinkedIn — para atrair possíveis recrutas. Qualquer momento que um americano se emprega publicamente em alguma função ligada a inteligência, a pessoa pode esperar uma torrente de interações de cidadãos chineses em redes sociais, de acordo com autoridades e ex-autoridades.

Respondendo a essa ameaça, agências federais têm aberto e expandido furtivamente suas operações domésticas de contraespionagem. Wray afirmou que o FBI tem milhares de investigações sobre operações de inteligência chinesa em andamento, e todos os seus 56 escritórios de campo acompanham casos ativos. Todos esses escritórios de campo mantêm forças-tarefa cibernéticas e de contrainteligência amplamente focadas na ameaça da espionagem chinesa.

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Diretor do FBI, Christopher Wray (à esq., focado) durante audiência no Senado sobre ameaças nacionais. Wray afirma que FBI tem intensificado ações de contraespionagem para identificar espiões chineses Foto: Tom Williams/via Reuters

Essas investigações envolvem tentativas de espiões chineses de recrutar informantes, roubar informações, hackear sistemas e monitorar e assediar dissidentes chineses dentro dos EUA, incluindo com uso dos chamados postos policiais avançados.

“Eles vão atrás de tudo”, afirmou Wray. “O que torna o aparato de inteligência da RPC tão pernicioso é a maneira que ele usa todos os meios ao seu dispor contra nós ao mesmo tempo, combinando ciberataques, espionagem de indivíduos, transações corporativas e investimentos para alcançar seus objetivos estratégicos.”

Mas críticos afirmam que parte dos esforços de contrainteligência do governo americano tem viés racial e paranóico, equivalendo a uma nova “Ameaça Vermelha” — acusação em parte apoiada pelos casos que o Departamento de Justiça tem de abandonar e em razão do organismo ter fechado a Iniciativa China, um programa da era Trump.

Agentes americanos e chineses intensificaram suas operações uns contra os outros em cidades relevantes, de Bruxelas a Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, a Cingapura

A China tem empreendido sua própria cruzada expansiva e custosa de contrainteligência, que ecoa campanhas políticas da era Mao. Em 1.º de julho, Pequim implementou uma ampla expansão de uma lei de contraespionagem. E em agosto, o Ministério de Segurança da Estado anunciou que “todos os membros da sociedade” devem ajudar a combater a espionagem estrangeira e ofereceu recompensas para qualquer indivíduo que forneça informações.

Os governos rivais também estabeleceram novas estações de escuta e acordos secretos de compartilhamento de inteligência com outros governos. Agentes americanos e chineses intensificaram suas operações uns contra os outros em cidades relevantes, de Bruxelas a Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, a Cingapura, com cada lado buscando influenciar autoridades estrangeiras e recrutar operadores bem colocados.

A arte de ler mentes

Para agências de espionagem dos EUA, as decisões e intenções de Xi, pode-se argumentar, são as informações de inteligência mais valiosas que elas buscam, mas o presidente chinês também é o mais esquivo dos alvos.

As agências de espionagem americanas investigam exatamente por que o ministro chinês da Defesa, o general Li Shangfu, parece ter sido colocado sob investigação por corrupção e por que Xi demitiu seu ministro de Relações Exteriores Qin Gang. A diplomacia e a formulação de políticas dos EUA dependem do conhecimento das motivações por trás desses movimentos.

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Uma década atrás, a rede de informantes dos EUA na China foi eliminada por autoridades chinesas de contrainteligência após suas identidades serem reveladas. Desde então, a CIA tem enfrentado grandes dificuldades para reconstruir sua rede, principalmente em razão da expansão de sistemas de vigilância eletrônica da China dificultar que recrutadores americanos da CIA se movimentem livremente no país para encontrar-se com contatos.

A China tem um software de inteligência artificial capaz até de reconhecer rostos e modos de andar de espiões americanos; disfarces tradicionais, portanto, não são suficientes para evitar detecção, de acordo com uma ex-autoridade de inteligência. Operadores americanos agora têm de passar dias, em vez de horas, usando rotas alternativas para evitar qualquer rastreamento de agentes chineses antes de se encontrar com alguma fonte ou trocar mensagens, afirmam ex-autoridades de inteligência.

Imagem de março de 2023 mostra o então ministro das Relações Exteriores da China, Qin Gang (à esq.), o secretário-geral do Conselho de Estado Wu Zhenglong (centro), e o ministro da Defesa da China, Li Shangfu (à dir). Gang e Shangfu foram demitidos e não fazem aparições públicas há meses Foto: Noel Celis / AFP

E Xi, como outros líderes autoritários, limita seu uso de telefone e comunicações eletrônicas justamente para dificultar que suas ordens sejam interceptadas por agências de inteligência estrangeiras.

Mas autoridades da vasta burocracia sob Xi usam dispositivos eletrônicos, dando a agências americanas chance de interceptar informações — o que espiões chamam de inteligência de sinais — para conseguir alguma visão interna das discussões de seus homólogos chineses.

No incidente do balão, a CIA começou a monitorar o equipamento em meados de janeiro, quando o Exército chinês lançou-o da Ilha Hainan, afirmaram autoridades.

Autoridades americanas também determinaram que os comandantes da Comissão Militar Central, que Xi preside, não estavam cientes desse voo em particular até que o caso estava prestes a virar crise e expressaram sua frustração aos generais responsáveis pelo programa de vigilância.

Desde aquela crise, a China pausou as operações de sua frota de balões, mas autoridades americanas dizem acreditar que Pequim provavelmente retomará o programa.

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Sob William Burns, que dirige a CIA desde 2021, a agência contratou mais especialistas em China, aumentou o gasto em esforços relacionados à China e criou um novo centro de missão na China. E apesar de autoridades americanas se recusarem a discutir detalhes sobre a rede de informantes da agência, Burns afirmou publicamente em julho que tinha progredido em reconstruir uma “forte capacidade humana de inteligência”.

Apesar de não estar claro quão robusta essa rede é, algumas autoridades dos EUA pensam que o estilo de governança extremamente autoritário de Xi dá às agências de inteligência americanas uma abertura para recrutar cidadãos chineses descontentes, incluindo entre elites políticas e empresariais que se beneficiaram nas décadas anteriores de menos controle do partido e de uma liderança menos ideológica.

Algumas proeminentes figuras chinesas, incluindo “pequenos-príncipes”, os filhos das elites do Partido Comunista, afirmam em conversas privadas que discordam do rumo que a China tomou.

Pequim também dedicou recursos para descobrir o pensamento de altas autoridades dos EUA. Um indiciamento do Departamento de Justiça revelado em julho sugere que empresários chineses ligados ao governo vinham tentando recrutar o ex-diretor da CIA James Woolsey, que estava cotado para se tornar autoridade de segurança do gabinete do governo Trump logo após a eleição de 2016.

Mais recentemente, uma invasão sofisticada e altamente direcionada à plataforma de computação em nuvem da Microsoft deu à China acesso aos e-mails de graduados diplomatas do Departamento de Estado, incluindo o embaixador americano em Pequim, e da secretária de Comércio, Gina Raimondo.

Autoridades americanas em visita à China adotam medidas elaboradas para evitar que segredos do governo lhes sejam furtados, recebem celulares e laptops descartáveis e orientações para deixar em casa os dispositivos que usam regularmente.

Dennis Wilder, ex-analista de inteligência americano especializado em China e pesquisador sênior da Universidade Georgetown, afirmou que discernir as intenções dos líderes americanos é uma das prioridades mais importantes das agências chinesas de inteligência.

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“Eles procuram planejamentos e intenções no alto nível”, afirmou ele. “O que o secretário de Estado está pensando realmente? O que ele está fazendo realmente? Quais operações a CIA está fazendo realmente contra nós?”

Mensurando força militar

Nenhum tema nas relações EUA-China é mais ameaçador que Taiwan. A ilha autogovernada é o ponto focal mais provável de uma contenda capaz de resultar em guerra, afirmam analistas. Xi tem afirmado que a China deve tomar controle do território — independente de facto — e ordenou suas Forças Armadas a construir capacidades para sua conquista até 2027. Mas até aqui os EUA e seus aliados não parecem ter informações de inteligência concretas a respeito de Xi estar ou não disposto a ordenar uma invasão.

E a China é obcecada com o outro lado da questão. Biden declarou quatro vezes que o Exército americano defenderá Taiwan se a China tentar tomar a ilha. Mas se Biden realmente pensa assim e se os líderes americanos planejam manter Taiwan permanentemente fora do alcance de Pequim são dúvidas que, acredita-se, concentram esforços chineses de inteligência.

Na ausência de informações de inteligência a respeito de intenções verdadeiras, Washington e Pequim colocam foco em coletar dados sobre capacidades militares um do outro. Os EUA, por exemplo, incrementaram sua vigilância aérea a bases militares chinesas.

Nos últimos 12 meses, de acordo com autoridades dos EUA, cerca de uma dúzia de cidadãos chineses foram flagrados tentando entrar em bases militares americanas para tirar fotos ou medir atividade eletromagnética

Enquanto isso, agentes chineses de inteligência integraram-se a muitos setores do governo taiwanês ao longo das décadas, afirmam ex-autoridades de inteligência dos EUA. Agora, agentes chineses estão tentando obter informações a respeito dos esforços do governo Biden de equipar Taiwan com certos sistemas de armamentos e fornecer treinamento secreto para soldados taiwaneses. Os agentes chineses também buscam mais detalhes sobre a crescente cooperação militar entre os EUA e seus aliados na Ásia.

“Para que isso tudo?”, perguntou o deputado Mike Gallagher, republicano de Wisconsin e presidente da nova comissão sobre China na Câmara. “Minha suspeita, considerando o que vemos em torno das nossas bases militares, considerando seus ciberataques, é que tudo gira em torno de Taiwan.”

Outras autoridades em Washington também afirmam que o desejo da China de saber mais a respeito da prontidão militar dos EUA explica suas tentativas de vigiar bases americanas. Nos últimos 12 meses, de acordo com autoridades dos EUA, cerca de uma dúzia de cidadãos chineses foram flagrados tentando entrar em bases militares americanas para tirar fotos ou medir atividade eletromagnética. Alguns esforços recentes parecem ter foco em bases que poderiam desempenhar alguma função importante em um eventual conflito em Taiwan, afirmam as fontes.

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Em agosto, o Departamento de Justiça acusou dois marinheiros americanos de fornecer segredos militares para agentes de inteligência chineses. Os marinheiros disseram-se inocentes.

Mas coleta de informações de inteligência não é em si um prelúdio de guerra. As batalhas de espionagem, na realidade, são capazes de substituir combates armados, como ocorreu com frequência durante a Guerra Fria.

Autoridades de inteligência dos EUA acreditam que a China não quer ir à guerra por Taiwan neste momento, disse ao Congresso a diretora de inteligência nacional, Avril Haines, em março. “Nós avaliamos que Pequim ainda acredita que se beneficia mais”, afirmou ela, “evitando um aumento nas tensões e preservando a estabilidade em suas relações com os EUA”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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