Opinião|Israel precisa negociar cessar-fogo, sair de Gaza e repensar todo seu papel na guerra com o Hamas

Em ponto estratégico da guerra, erro do governo Binyamin Netanyahu levaria a jornada perigosa e preocupante, que pode terminar com liderança remanescente do Hamas no controle do enclave palestino

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Atualização:

Israel está neste momento em um ponto estratégico de sua guerra em Gaza, e tudo indica que o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu escolherá o caminho errado — e levará o governo Biden a uma jornada muito perigosa e preocupante. Tão perigosa e preocupante que a melhor opção de Israel, quando tudo isso for dito e feito, poderá ser deixar uma liderança remanescente do Hamas no poder em Gaza. Sim, você leu corretamente.

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Para entender por quê, devemos retroceder um pouco o olhar. Eu argumentei em outubro que Israel estava cometendo um erro terrível ao se apressar para invadir Gaza, da mesma forma que os Estados Unidos fizeram no Afeganistão após o 11 de Setembro. Eu achava que Israel deveria colocar foco primeiro em resgatar os reféns, deslegitimar o Hamas por seu ataque assassino e feroz de 7 de outubro e caçar a liderança do Hamas de uma maneira mais direcionada — mais Munique, menos Dresden. Ou seja, uma resposta militar similar à maneira que Israel localizou os assassinos de seus atletas na Olimpíada de 1972, em Munique, não à maneira que os EUA transformaram Dresden em uma pilha de escombros na 2.ª Guerra.

Mas eu compreendi que muitos israelenses sentiam que tinham um direito moral e estratégico, assim como uma necessidade, de entrar em Gaza e remover o Hamas “de uma vez por todas”. E nesse caso, argumentei, Israel precisaria de três coisas — tempo, legitimidade e recursos militares e de outros tipos dos EUA. A razão: o ambicioso objetivo de aniquilar o Hamas não poderia ser alcançado rapidamente (se é que é possível); a operação militar poderia acabar matando civis inocentes, dada a maneira que o Hamas se entrincheirou em túneis debaixo deles; e isso ocasionaria um vácuo de segurança e governo em Gaza que teria de ser ocupado pela Autoridade Palestina sediada na Cisjordânia, que não pertence ao Hamas e teria de ser reformada e transformada para assumir a tarefa.

Em suma, Israel precisaria travar esta guerra com danos colaterais mínimos para os civis palestinos e adicionar à operação um horizonte político para uma nova relação entre israelenses e palestinos, construída em torno de dois Estados-nação para dois povos originários. Fazer isso daria a Israel uma chance de dizer ao mundo que não está travando uma guerra de vingança ou ocupação, mas uma guerra para eliminar a entidade palestina que tentou destruir qualquer tipo de solução de dois Estados — o Hamas — e criar um espaço político para um acordo com a Autoridade Palestina, que ainda está comprometida com um desfecho de dois Estados. Essa estratégia teria obtido apoio, financiamento e até, acho, tropas de paz de Estados árabes moderados, como os Emirados Árabes Unidos.

Soldados de Israel avançam em tanque de guerra, perto da fronteira com Gaza, 9 de abril de 2024.  Foto: Leo Correa/Associated Press

Infelizmente, Netanyahu e seus militares não seguiram esse caminho. Optaram, em vez disso, pela pior combinação estratégica: militarmente optaram pela abordagem Dresden, que, apesar de poder ter matado cerca de 13 mil combatentes do Hamas, também matou milhares de civis palestinos, deixando centenas de milhares feridos, deslocados ou desabrigados — e deslegitimando, para muita gente no mundo inteiro, o que Israel pensou ser apenas uma guerra.

E diplomaticamente, em vez de adicionar à sua estratégia de guerra uma iniciativa que compraria ao menos algum tempo para Israel e produziria legitimidade e recursos para desmantelar o Hamas, Netanyahu recusou-se a oferecer qualquer horizonte político ou estratégia de saída — e descartou expressamente qualquer colaboração com a Autoridade Palestina, atendendo às ordens dos supremacistas judeus em sua coalizão de governo.

É uma estratégia completamente insana — que amarrou Israel a uma guerra politicamente impossível de vencer e acabou isolando os EUA, colocando em risco nossos interesses regionais e globais, comprometendo o apoio a Israel dentro dos EUA e fraturando a base do Partido Democrata, do presidente Joe Biden.

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E o momento também é verdadeiramente terrível. A equipe de política externa de Biden, liderada pelo secretário de Estado, Antony Blinken, e pelo conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, acaba de concluir um esboço de um novo acordo estratégico com a Arábia Saudita — que inclui um programa nuclear civil para os sauditas, o fornecimento de armas americanas avançadas e relações de segurança muito mais profundas entre Washington e Riad. O acordo, disse-me uma alta autoridade do governo Biden, poderia ser negociado e concluído em questão de semanas — exceto por um elemento. Ele depende da normalização das relações entre Arábia Saudita e Israel em troca de Israel terminar a guerra na Faixa de Gaza, deixar o enclave e concordar com um “caminho” definido para uma solução de dois Estados — com métricas claras em termos do que tanto Israel quanto a Autoridade Palestina teriam de fazer sob um cronograma estabelecido.

Estamos falando de um acordo divisor de águas — precisamente o acordo que o Hamas apoiado pelo Irã pretendeu minar quando lançou esta guerra em 7 de outubro, porque esse acordo isolaria o Irã e o Hamas. Mas primeiro a guerra em Gaza tem de acabar, e Israel precisa de um governo disposto a empreender o caminho de dois Estados.

O que nos traz a esta bifurcação. Eu prefiro que Israel mude imediatamente o curso. Ou seja, junte-se ao governo Biden aceitando essa jornada para uma acordo de dois Estados que abriria caminho para a normalização entre Israel e Arábia Saudita e também daria cobertura para a Autoridade Palestina e Estados árabes moderados tentarem estabelecer um governo não pertencente ao Hamas em Gaza, no lugar de Israel. E — conforme a equipe de Biden insistiu privadamente a Netanyahu — desistir completamente de invadir Rafah e, em vez disso, usar uma estratégia direcionada para extirpar o que restou da liderança do Hamas.

Mesmo se permanecer determinado a ignorar o conselho dos EUA, eu rezo para que Israel não tente invadir Rafah nem rejeite o envolvimento da Autoridade Palestina no futuro de Gaza. Porque isso seria um convite para uma ocupação israelense permanente em Gaza e uma insurgência permanente do Hamas — o que faria Israel sangrar economicamente, militarmente e diplomaticamente de maneiras muito perigosas.

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Tão perigosas que eu acredito que Israel faria muito melhor concordando com a exigência do Hamas de uma retirada israelense total de Gaza, um cessar-fogo e um acordo “todos por todos” — para a libertação de todos os reféns israelenses em troca de todos palestinos presos em Israel. Em outras palavras, mesmo se não estabelecer uma parceria com a Autoridade Palestina e Estados árabes moderados para criar um outro governo em Gaza nem criar condições para normalizar as relações com a Arábia Saudita, Israel precisa resgatar os reféns, pôr fim à crise humanitária em Gaza, sair de Gaza, realizar uma nova eleição e repensar profundamente a coisa toda.

Por favor, Israel, não seja absorvido por Rafah nem ocupe Gaza permanentemente. Isso seria um desastre.

“Friedman, quer dizer então que você permitiria que um Hamas dizimado militarmente e seu líder assassino, Yahya Sinwar, governassem Gaza novamente?”

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Sim, no curto prazo. Como eu disse, não é minha alternativa preferida. Mas Netanyahu deixou Israel SEM NENHUMA OUTRA ALTERNATIVA. O primeiro-ministro se recusa a determinar que os militares israelenses governem Gaza e não aceita a Autoridade Palestina. O que deixa duas opções: ou Gaza vira uma terra de gangues similar a uma Somália no Mediterrâneo; ou Gaza é administrada por algum governo precário do Hamas.

Se eu fosse Israel, preferiria um Hamas enfraquecido do que uma Somália ao lado por duas razões.

Eu não tenho dúvida de que quando Sinwar sair de seu esconderijo, na manhã seguinte ao início de um cessar-fogo, alguns o idolatrarão pelo dano que ele infligiu contra Israel. Mas na manhã seguinte à manhã seguinte Sinwar será brutalmente questionado pelos palestinos de Gaza: onde está minha casa? Onde está meu emprego? Quem lhe deu o direito de expor meus filhos à morte e à devastação?

Palestinos andam no meio da destruição após tropas de Israel deixarem Khan Younis, 8 de abril de 2024. Foto: Fatima Shbair/Associated Press

Essa é a melhor punição que consigo imaginar para Sinwar. Sinwar que responda por toda a dificuldade em Gaza que ele próprio exacerbou tão irresponsavelmente — não Israel. Os palestinos são os únicos que podem deslegitimar o Hamas; e mesmo que não seja fácil, pois o Hamas matará qualquer um para se manter no poder, desta vez nós veremos mais que um punhado de dissidentes.

Amira Hass, uma repórter bem informada do Haaretz sobre assuntos palestinos, escreveu uma matéria recentemente com base em entrevistas telefônicas com habitantes de Gaza intitulada: “‘As pessoas estão amaldiçoando Sinwar constantemente’: Palestinos de Gaza contrários ao Hamas têm certeza que são maioria”.

Segundo a reportagem: “As carroças puxadas por burros circulando cheias de gente e colchões são um cenário comum da guerra em Gaza e do atual cerco. ‘Mais de uma vez ouvi um dono de carroça tocando seu burro e dizendo coisas como, ‘Anda, Yahya Sinwar, anda’, afirmou Basel (um pseudônimo, como de todos os entrevistados nesta reportagem). (…) Sim, Israel bombardeia e mata, disse Basel, mas o palestino recusa-se a escusar o Hamas de responsabilidade pela catástrofe que assola o povo de Gaza. ‘As pessoas xingam Sinwar constantemente, mas isso não transparece nos relatos dos jornalistas’, afirmou ele. ‘Eu sei que falo em nome de muita gente’, disse Basel. ‘Eu tenho direito de falar mesmo que somente por ser uma das milhões de vidas que o Hamas está arriscando em nome de slogans malucos sem base na realidade’”.

Nesse momento, se assim suceder, quando Israel sair de Gaza e resgatar seus reféns, a equipe de Biden já estará falando com o Egito sobre trabalhar proximamente com os EUA e Israel para assegurar que o Hamas nunca mais seja capaz de contrabandear o tipo de armas que contrabandeou no passado sob a fronteira Egito-Gaza. Israel poderia afirmar que todos os alimentos e medicamentos que os habitantes de Gaza necessitam lhes serão entregues, assim como os sacos de cimento para a reconstrução de países que possam querer ajudar. Mas se for constatado que um saco sequer foi desviado para construção de novos túneis de ataque, reconstrução de fábricas de foguetes ou uma retomada de ataques contra Israel, as fronteiras serão fechadas novamente, e Sinwar se verá diante daquele dilema: voltar às maneiras anteriores do Hamas e matar seu povo de fome — ou manter o cessar-fogo.

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A segunda razão é que não apenas os habitantes de Gaza se levantarão contra Sinwar e o Hamas. Muitos palestinos percebem que Sinwar lançou esta guerra cinicamente porque estava perdendo influência para facções mais moderadas dentro do Hamas e para seu arquirrival, o movimento político Fatah, que controla a Autoridade Palestina em Ramallah. Ele também temeu esse possível acordo entre Israel, Arábia Saudita e os palestinos.

Conforme Hussein Ibish — especialista do Arab Gulf States Institute, em Washington, que produziu algumas das análises mais lúcidas desta guerra desde seu início — argumentou em um ensaio recente no Daily Beast, o Hamas quis provocar uma resposta massiva de Israel ao 7 de Outubro em parte para escantear o Fatah. “O aumento no sentimento nacionalista e a indignação compartilhada em relação às mortes e ao sofrimento em massa dos 2,2 milhões de civis palestinos em Gaza impediram líderes nacionalistas como o presidente Mahmoud Abbas (que também lidera a OLP) de reconhecer publicamente o cinismo estarrecedor do Hamas”, escreveu ele.

Mas agora, nota Ibish, a briga está ficando feia: quando o Hamas reclamou da decisão da Autoridade Palestina de nomear um novo primeiro-ministro sem levar em conta a vontade do Hamas, o Fatah respondeu com um comunicado notando que o Hamas não consultou ninguém antes de lançar “uma aventura em 7 de outubro que ocasionou uma nakba mais grave que a Nakba de 1948″. “Nakba” significa catástrofe.

Palestinos retornam para Khan Younis devastada por ofensiva israelense, 8 de abril ded 2024.  Foto: Fatima Shbair/Associated Press

Ibish concluiu, “Se forem repetidas — e certamente deveriam ser, diariamente ou até hora a hora — essas acusações poderiam criar a estrutura de permissão para palestinos comuns de todas as partes, e especialmente em Gaza, começarem a se perguntar honestamente por que o Hamas agiu em 7 de outubro sem se importar com o impacto sobre os habitantes de Gaza nem prepará-los de nenhuma maneira para isso”.

Somente essa dinâmica é capaz de marginalizar o Hamas e a Jihad Islâmica — os próprios palestinos desacreditando esses grupos em razão do que eles são realmente: representantes do Irã malucos e assassinos, cujas lideranças estão dispostas a sacrificar vidas palestinas eternamente para perseguir sua aspiração por hegemonia regional. Se não conseguirem ou não quiserem fazer isso, os palestinos nunca terão seu Estado.

Permitam-me uma breve consideração sobre o Irã. Como eu temia, Israel caiu direitinho na armadilha do ponto de vista de Teerã. Ao invadir Gaza sem nenhum plano para o dia seguinte, ao mesmo tempo que ocupa a Cisjordânia, Israel ficou sobrecarregado militarmente, economicamente e moralmente — enquanto desviou atenção do fato de o Irã estar acelerando seu programa nuclear e expandindo sua influência enquanto maior potência ocupante no Oriente Médio hoje.

O Irã controla indiretamente grandes porções de cinco Estados ou territórios árabes (no Líbano, na Síria, no Iraque, no Iêmen e em parte de Gaza) usando aliados locais dispostos a vender seus próprios povos em benefício iraniano. Teerã ajudou a manter cada ente árabe castigado pela guerra ou em estado precário. E sou contrário tanto à ocupação israelense à Cisjordânia quanto às ocupações iranianas no Líbano, na Síria, no Iraque e no Iêmen. Criticar o “colonialismo” dos assentamentos israelenses na Cisjordânia e ignorar o “colonialismo” do Exército de Guardiães da Revolução Islâmica em cinco centros árabes de poder é absolutamente desonesto. O comandante da Guarda Revolucionária Iraniana, que Israel matou na Síria semana passada, não estava lá a passeio.

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O presidente Biden tem um plano: obter um cessar-fogo de seis semanas e libertar os reféns. Depois disso, como parte do pacote de normalização com os sauditas, Biden apresentará uma corajosa iniciativa de paz, que o especialista israelense em processos de paz Gidi Grinstein chamou de “mais por mais” — mais segurança e normalização com Estados árabes que jamais foram oferecidas a Israel; e mais ajuda árabe e americana para os palestinos alcançarem estatuto de Estado que eles jamais experimentaram. Esperemos que essa iniciativa seja capaz de produzir um cessar-fogo permanente e marginalizar ainda mais o Hamas e o Irã.

Eu li todos os artigos afirmando que uma solução de dois Estados é impossível neste momento. Acho que eles estão 95% corretos. Mas prefiro colocar foco nos 5% de chance deles estarem errados e na chance de lideranças corajosas conseguirem fazê-los estar errados. Porque a alternativa é a certeza de 100% de uma guerra eterna, com armas maiores e mais precisas, que destruirão ambas as sociedades. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Thomas Friedman

É ganhador do Pullitzer e colunista do NYT. Especialista em relações internacionais, escreveu 'De Beirute a Jerusalém'

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