Análise | EUA levaram décadas para construir sua influência global e Trump está destruindo tudo em semanas

Longe de tornar os EUA grandes novamente, essa erosão do poder brando prejudicará a segurança econômica e nacional dos Estados Unidos por anos e anos

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Por Max Boot (Washington Post)
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O cientista político Joseph Nye cunhou o termo soft power (poder brando) em 1990 para denotar “a capacidade de afetar os outros por atração e persuasão, em vez de apenas coerção e pagamento”. Muito antes de essa capacidade ter um nome, ela era uma parte fundamental da projeção de poder dos Estados Unidos: o poder brando ajuda a explicar por que os EUA têm bases militares em pelo menos 80 países, por que o dólar se tornou a moeda das reservas internacionais e por que o inglês se tornou a língua global dos negócios e da diplomacia.

A China e a Rússia também são poderosas militarmente, e a China é uma superpotência econômica, mas esses países não exercem nada próximo da influência global que os americanos exercem. Isso porque os EUA têm sido uma superpotência excepcionalmente benéfica: cometeram sua cota de crimes e erros, com certeza, mas também têm uma longa história de altruísmo (pense no Plano Marshall ou no PEPFAR, o Plano de Emergência do Presidente para o Alívio da Aids). Os EUA também têm sido um farol de esperança para milhões de pessoas “ansiosas por respirar livremente”, e geralmente têm apoiado normas e instituições internacionais que, até certo ponto, restringem o poder do próprio país.

Presidente americano Donald Trump fala com a imprensa no Salão Oval da Casa Branca. Foto: Evan Vucci/AP

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Enquanto o poder brando dos Estados Unidos levou décadas para ser acumulado, o presidente Donald Trump parece determinado a destruí-lo em questão de semanas. Basta ver a guerra comercial que ele lançou no mais recente fim de semana contra o Canadá e o México (antes de suspender as tarifas por um mês na segunda-feira), o congelamento que ele acabou de impor aos programas de ajuda externa dos EUA e a decisão cruel que ele acabou de tomar que pode devolver centenas de milhares de refugiados venezuelanos à ditadura marxista da qual fugiram. Cada uma dessas jogadas representa outro prego no caixão do poder brando dos EUA.

Comecemos com o que o conselho editorial conservador do Wall Street Journal corretamente chama de “a guerra comercial mais idiota da história”. Trump anunciou que está impondo tarifas de 10% à China, o principal concorrente dos Estados Unidos, e tarifas de 25% ao México e ao Canadá. Por quê? Suas explicações são absurdas. Ele alega que o México e o Canadá não estão fazendo o suficiente para impedir o fluxo de fentanil e imigrantes ilegais com destino aos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que reclama dos déficits comerciais dos EUA com esses países.

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No entanto, o comércio dos EUA com o México e o Canadá, que em 2022 totalizou mais de US$ 1,7 trilhão, é mutuamente benéfico. A indústria automobilística dos três países é tão integrada que as tarifas de Trump, se implementadas, quase certamente causarão grandes perturbações às montadoras dos EUA. Quanto à alegação de que o México e o Canadá não estão fazendo o suficiente para impedir o fluxo de migrantes e drogas, eles parecem estar fazendo o melhor que podem. Mas há limites em sua capacidade de controlar as próprias fronteiras, assim como há limites na capacidade do governo dos EUA de impedir a exportação ilegal de armas para ambos os países (“Em 2023”, relata a BBC, “90% das armas de fogo recuperadas após crimes violentos em Ontário, a província mais populosa do Canadá, tiveram sua origem rastreada de volta aos EUA”).

O Canadá é particularmente inocente: no ano fiscal de 2024, a fronteira entre EUA e Canadá foi responsável por menos de 1% de todas as apreensões de fentanil e 1,5% de todas as apreensões de imigrantes sem documentos nas fronteiras dos EUA. Na segunda feira, Trump disse que estava adiando as tarifas por um mês enquanto o Canadá e o México reforçam a segurança da fronteira, embora no caso do Canadá não houvesse nenhum problema com a segurança da fronteira para começo de conversa.

Não surpreende que os canadenses “estejam um pouco perplexos”, disse o primeiro-ministro Justin Trudeau no sábado, “quanto ao motivo pelo qual nossos amigos e vizinhos mais próximos estão escolhendo nos atacar”. Afinal, este é um país que enviou seus soldados para lutar ao lado das tropas dos EUA, das praias do Dia D na Europa às vilas de Kandahar no Afeganistão. A âncora de TV canadense Adrienne Arsenault diz que “o país inteiro” está recebendo “uma aula de desilusão”. Torcedores comuns de esportes canadenses mostraram seus sentimentos vaiando a apresentação do hino americano, ”The Star-Spangled Banner”, nos jogos da NBA e da NHL no fim de semana.

Ao congelar a maior parte da ajuda externa dos EUA por 90 dias e agir para desmantelar a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, Trump está alienando muito mais pessoas ao redor do mundo que passaram a depender da ajuda dos EUA para sobreviver a doenças como Aids e malária, para ter acesso a água limpa ou para evitar a desnutrição. Longe de ser uma “organização criminosa” e “malvada” que merece “morrer” — na bizarra descrição de Elon Musk, o homem mais rico do mundo, no domingo — a USAID tem sido um componente vital do poder brando dos Estados Unidos. Sem dúvida, alguns programas de ajuda são um desperdício e precisam de reforma, mas não há desculpa para esse tipo de ataque generalizado a toda a assistência estrangeira.

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Enquanto o Secretário de Estado Marco Rubio concedeu uma isenção do congelamento de ajuda para o trabalho humanitário que salva vidas, grupos de ajuda externa dizem que o sistema de pagamento da USAID foi desmantelado e que “os medicamentos ainda estão nas prateleiras sem enfermeiros para distribuí-los“. Não importa se isso é malevolência ou incompetência; o resultado é o mesmo.

Foto de 2016 mostra refugiados preparando alimentos, incluindo mingau de milho doado pela USAID e conhecido localmente como posho, durante a visita da ONU em Adjumani, Uganda. Foto: Stephen Wandera/AP

Em Uganda, o New York Times relata que inseticidas deixaram de ser pulverizados e mosquiteiros deixaram de ser distribuídos para combater a malária. Na Zâmbia, medicamentos que podem parar hemorragias em mulheres grávidas deixaram de ser distribuídos. E em todo o sul da Ásia, África e América Latina, milhares de pessoas inscritas em testes clínicos perderam o acesso ao tratamento. Enquanto pesquisadores e gerentes de programa falavam dos resultados do congelamento da ajuda dos EUA com um repórter do Times, muitos deles “caíram em lágrimas ao descrever a rápida destruição de décadas de trabalho”.

E com que propósito? Para economizar 1% do orçamento federal?

Sem dúvida, os refugiados venezuelanos que agora serão devolvidos à força para sua pátria destituída e repressiva também derramarão mais do que algumas lágrimas. O próprio Rubio, enquanto ainda era senador dos EUA, disse em uma carta de 2022 que deportar venezuelanos seria uma “sentença de morte”. E Trump, em seu primeiro mandato, ofereceu aos venezuelanos um adiamento da deportação por causa do que ele descreveu como a situação “catastrófica” no país deles.

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Mas quaisquer restrições que guiaram Trump em seu primeiro mandato estão sendo rapidamente eliminadas em seu segundo. Então, agora, o Departamento de Segurança Interna está revogando o status de proteção temporária para 600.000 refugiados venezuelanos nos EUA, colocando-os em risco de deportação. Isso é uma traição à identidade dos EUA enquanto um país que oferece abrigo para refugiados, incluindo minha própria família quando fugimos da União Soviética em 1976.

É impressionante ver quanto dano Trump causou ao poder brando dos EUA em apenas duas semanas, e doloroso imaginar o quanto mais ele poderia fazer nas próximas 206 semanas. Quaisquer pequenas concessões que Trump possa eventualmente extorquir de aliados dos EUA, como México ou Canadá, com suas demandas pesadas, não valem o dano aos relacionamentos de longo prazo dos Estados Unidos com esses países.

O maior beneficiário provavelmente será a China, que, como o senador democrata Chris Murphy, de Connecticut, alerta no X, “preencherá o vazio” deixado pelo fim dos programas de ajuda dos EUA. Agora que Trump está caprichosamente impondo tarifas aos aliados dos EUA, a China, apesar de seu comportamento intimidador, também se tornará um parceiro comercial mais atraente e um contrapeso ao poder dos EUA para muitos países ao redor do mundo. Longe de tornar os EUA grandes novamente, essa erosão do poder brando prejudicará a segurança econômica e nacional dos Estados Unidos por anos e anos./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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