Caçada de javalis tem até safári em fazendas e já teve 11 mortes acidentais em 5 anos

Homem foi morto por amigo no sábado passado no interior de São Paulo. Prática exige autorização do Ibama e requer treinamento e aval para uso de armas de fogo

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Por José Maria Tomazela
Atualização:

SOROCABA – O tiro acidental que vitimou um caçador no interior de São Paulo na última semana não foi um caso isolado. Embora não haja estatística oficial, a reportagem do Estadão apurou outras dez mortes com o mesmo padrão desde 2019 no Brasil (veja a lista completa abaixo). Permitida pelos órgãos ambientais apenas para controle de uma espécie invasora, a caça a esses animais movimenta um negócio que vai da venda de armas e munições ao esporte e turismo, com safáris de caças organizados por profissionais.

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A Confederação de Tiro e Caça do Brasil (CTCB) oferece safáris para caçada ao javali com acampamento completo para os caçadores. Em seu site, a entidade pede a indicação de fazendas com animais que possam ser abatidos por estarem incomodando e dando prejuízo aos donos. “Estamos precisando de fazendas para as caçadas. Precisamos da aprovação do dono da fazenda, endereço completo com as coordenadas, bem como as condições para os caçadores”, diz, em sua página oficial.

Em outro ponto, a entidade convoca caçadores para abater javalis. “Vamos unir uma grande tribo de caçadores, em vários Estados, que desejam praticar o esporte da caça.” A confederação reúne mais de 130 clubes de caça e tiro no país, dos quais 56 ficam no Estado de São Paulo. Na internet, grupos de caçadores exibem javalis mortos como troféus e oferecem os serviços para fazendeiros. Alguns sites e páginas em redes sociais oferecem as melhores armas para a caçada, entre elas fuzil 7.62 e a carabina calibre 357.

Bombeiros participaram de resgate a corpo de vítima no interior de São Paulo no fim de semana passado Foto: Corpo de Bombeiros

A página “Caçadores de Javali”, grupo privado no Facebook, tem 148,4 mil seguidores. Já a “Aventuras no Mato” exibe vídeos de caçadas. Em outra página da rede social, “Caça do Javali”, grupo público com 15 mil membros, caçadores de todo o Brasil expõem os resultados de suas caçadas.

De acordo com Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, como regra, a caça no Brasil é proibida pela Lei 5.197/67, mas existe uma permissão de caça para abate de espécies invasoras, sob a supervisão do Ibama. “O ponto é que esta caça no Brasil foi bastante desregulada na era Bolsonaro. O registro de arma no Exército para essa caça e a compra de munições prescindem de qualquer interlocução com o Ibama. Alguém registrado pode comprar armas e munições por anos sem ter de comprovar que estes itens foram de fato usados para combater espécies invasoras.”

Além disso, segundo ele, os requisitos técnicos para concessão de registros de caçador não preveem um treinamento distinto do que é dado para defesa pessoal, “só que as necessidades são totalmente distintas, pois em muitos casos estes caçadores irão atuar e se deslocar com outras pessoas armadas e, inclusive, muitas vezes fazendo disparos usando veículos em movimento, como plataformas de tiro, o que também aumenta os riscos de acidentes.”

Javali abatido no interior de São Paulo é manejado por integrante de grupo de caça realizada com autorização do Ibama Foto: Gabriela Biló/Estadão - 17/12/2016

O especialista acha que é preciso controlar esta atividade, exigindo revalidações para a comprovação dos abates. “Acreditamos haver um conflito entre o interesse ambiental de controle da espécie invasora e o interesse de caçar por prazer ou esporte. Se de um lado há interesse de reduzir a espécie, da parte dos caçadores, em muitos casos, ter mais animais em mais Estados aumenta a possibilidade de atividade da categoria, como já foi documentado em várias ocasiões.”

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O Ibama foi questionado sobre as colocações feitas pelo especialista, mas ainda não deu retorno. A Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado informou que os proprietários rurais que constatarem a presença de javalis em suas propriedades devem comunicar aos órgão municipais de agricultura e meio ambiente, ou à própria secretaria.

O Exército informou que o caçador deve estar vinculado a uma entidade de tiro voltada à caça, como clubes, associações, federações de caça que se dedicam a essas atividades e estejam registradas no Comando do Exército. Disse ainda que faz parte do plano anual de fiscalização de produtos controlados das Regiões Militares fiscalizar essas entidades de tiro.

A aquisição de munição para armas de uso permitido por colecionadores, atiradores e caçadores é condicionada à apresentação pelo adquirente do Certificado de Registro de Arma de Fogo no Sistema Nacional de Armas (Sinarm) ou no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), conforme o caso, ficando restrita ao calibre correspondente.

Os atiradores e os caçadores podem adquirir, no período de um ano, até 600 unidades de munição para cada arma de uso permitido registrada em seu nome, não podendo ultrapassar esse limite. Todas as munições adquiridas são controladas por meio do Sistema de Controle de Vendas e Estoque de Munições (Sicovem). O Exército informou ainda que a situação atual poderá ser modificada com a edição de novo decreto que regulamentará a Lei 10.826 (lei da arma de fogo), que é objeto de debate por um grupo de trabalho criado por decreto.

Sobre a falta de interlocução com o Ibama, o Exército informou que cada órgão tem atribuições específicas na questão das caçadas ao animal invasor.

Autorização passou a ser online

De acordo com o Ibama, o javali (Sus scrofa), nativo da Europa, Ásia e norte da África, foi introduzido no Brasil a partir da década de 1960 para criação e consumo da carne. O animal exótico, quase sem predadores naturais, se transformou em uma praga, reproduzindo-se e formando grupos que atacam lavouras, assoreando cursos d’água e destruindo a vegetação nativa.

Atualmente, com a criação proibida, o animal tem alta população em 15 Estados brasileiros, com predominância nas regiões sul, sudeste e centro-oeste.

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Segundo o Ibama, dos 5.570 municípios brasileiros, 1.536 já registraram ocorrências com javalis. Não houve registros apenas nos Estados de Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte, Amapá e Roraima. Em 2013, o Ibama autorizou o controle da espécie através do abate, recomendando cuidados para evitar que animais similares da fauna silvestre brasileira, como o cateto e a queixada, não fossem abatidos por engano.

Na gestão do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o órgão passou a autorizar o manejo de forma online.

Como é feita a liberação pelo Ibama

  • O procedimento é gerido pelo Ibama por meio de autorizações de manejo de fauna exótica invasora.
  • Um sistema do Ibama cadastra as propriedades rurais onde pode ser feito o manejo, com identificação por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR).
  • As autorizações devem ser renovadas a cada três meses, quando os controladores precisam apresentar relatórios com o número de javalis abatidos em cada propriedade.
  • Para o manejo com emprego de armas de fogo, o controlador precisa ter também o Certificado de Registro de Caçador do Exército.

Polícia investiga caso em Pindamonhangaba

O homem que atirou e matou um colega durante uma caçada a javalis, no sábado, 6, em Pindamonhangaba, tem o registro de CAC (Colecionador, Atirador e Caçador), segundo a Polícia Civil. A vítima, que também era CAC, foi atingida por um disparo de revólver calibre 357 de alta potência. O grupo – havia um terceiro caçador no local - levava também espingardas calibre 12. As causas do homicídio culposo (sem intenção de matar) ainda são investigadas pela Polícia Civil. Essa foi a 11.ª morte em caçadas de javali no Brasil em menos de cinco anos.

Armas do caso foram apreendidas para perícia Foto: Polícia Civil

A caçada ao javali, animal exótico, considerado uma ameaça ao meio ambiente e predador de lavouras, é autorizada pelos órgãos ambientais, mas os caçadores precisam se cadastrar em uma superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

De acordo com o delegado Rubens Netto, de Pindamonhangaba, os três amigos tinham as licenças tanto para portar as armas quanto para as caças e eram experientes. “As armas estavam regulares e foram recolhidas apenas para perícia. O que estamos investigando são as circunstâncias em que ocorreu a morte”, disse.

Conforme o relato à polícia, o autor do disparo, Michael Rafael Prado, de 29 anos, e a vítima, Reinaldo da Silva, de 48, saíram na madrugada daquele dia de Campos do Jordão para caçar javalis, na companhia de um terceiro caçador, José Mario dos Santos, de 65 anos.

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Por volta das 10 horas, eles estavam em um local conhecido como Estrada do Pinga-Rural quando os cães cercaram e “amarraram” (imobilizaram) um javali adulto. Os dois se posicionaram para abater o animal, mas Silva teria entrado na linha de tiro do colega. Sem perceber o parceiro entre ele e o javali, Prado disparou e o atingiu.

Santos estava mais afastado e só chegou ao local após o desfecho trágico. Os três usaram celulares para se comunicar com a polícia. Uma equipe da Polícia Militar conseguiu chegar ao local, de difícil acesso, na divisa de Pindamonhangaba com Campos de Jordão, mas não conseguiu remover o corpo. Os dois caçadores foram levados para o plantão da Polícia Civil, mas o corpo da vítima foi coberto e deixado em um local com sinal de GPS para ser retirado na manhã seguinte por um helicóptero da Polícia Militar.

Segundo o delegado, foram requisitados os exames periciais, incluindo o exame residuográfico dos caçadores. “Todos os elementos que temos indicam que foi um tiro acidental, mas ainda esperamos os laudos da perícia. Não havia razão para prender o autor do disparo, pois, mesmo estando em lugar ermo em que poderia ter fugido, ele aguardou a chegada dos policiais e se apresentou espontaneamente”, disse. Segundo ele, o que se apura é se o caçador agiu com imprudência, ignorando os cuidados exigidos para o disparo de arma de fogo letal.

Os três amigos são caçadores de javalis há vários anos, conforme indicam postagens em redes sociais. Em algumas imagens, eles aparecem portando armas e posando com os animais abatidos. No dia anterior à caçada, Prado havia postado em sua página no Facebook: “Final de semana é dia de fazer um manejo de javali com a cachorrada”.

Para o instrutor de tiros Paulo Marcondes, muitos clubes não preparam os CACs para caçar animais. “Os tipos de armas e os movimentos de tiro mudam quando se trata de caça do javali, por exemplo. Usam-se espingardas calibre 12 e 28 para derrubar o animal à distância. O revólver calibre 357 é uma arma de backup, para abater o animal já ferido, ou para ser usada quando o animal corre em direção ao caçador. O que pode ter acontecido é que eles podem ter tentado cercar o javali e um se posicionou na frente do outro”, disse.

A reportagem entrou em contato com Prado através de suas redes sociais e não teve retorno. Familiares de Reinaldo da Silva foram procurados e também não retornaram as ligações. O Estadão procurou também a CTCB e ainda aguarda retorno.

Abate já virou alvo de discussão política

No Estado de São Paulo, o abate de javali entrou na discussão política durante a campanha presidencial de 2018. Em junho, o então governador Márcio França sancionou uma lei proibindo a caça de qualquer animal doméstico, silvestre ou exótico no Estado. A decisão gerou críticas do setor produtivo agrícola.

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O PTB, partido ligado ao então candidato Jair Bolsonaro, entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a lei. Em agosto, o governo paulista baixou resolução liberando o controle do javali em áreas onde o animal causava prejuízo aos agricultores.

Já no governo Bolsonaro, os caçadores foram beneficiados por uma série de medidas que facilitaram o acesso às armas – muitas delas foram revistas depois. O Ibama, sob a gestão bolsonarista, facilitou também o cadastramento dos caçadores de javalis. Em maio de 2021, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) apareceu em uma foto ao lado de fazendeiros com dezenas de javalis mortos, após acompanhar uma caçada em São Francisco de Assis, no Rio Grande do Sul.

Veja quais são as mortes recentes de caçadores de javalis

  1. Em maio de 2023, o caçador Reinaldo da Silva, de 48 anos, foi atingido por um tiro disparado por um amigo quando caçavam javalis em Pindamonhangaba, interior de São Paulo.
  2. Em outubro de 2022, Fabiano Silveira Machado, de 48 anos, morreu ao ser atingido por um tiro quando caçava com amigos em Espumoso (RS). Os colegas disseram que o tiro saiu de sua própria arma, quando ele cercava um javali com seus cães.
  3. Em julho de 2022, o caçador Fernando Corrêa, de 35 anos, foi atingido pelo tiro disparado por um colega, em Lebon Régis, no oeste de Santa Catarina.
  4. Em maio de 2022, Manoel Casemiro Rodrigues, de 32 anos, foi atingido por um tiro de espingarda disparado acidentalmente por outro caçador, em Tarauacá, no Acre.
  5. Em maio de 2021, Leocir da Silva, de 59 anos, foi morto com um tiro de calibre 12 por um amigo durante uma caçada de javali em Caarapó (MS).
  6. Em maio de 2021, Allan Michel de Almeida, de 26 anos, foi morto por um amigo em caçada a porcos selvagens, em Sorriso (MT).
  7. Em julho de 2020, o jovem Breno Miranda da Rocha, de 17 anos, foi atingido por tiro disparado por um caçador quando acompanhava seu pai em uma caçada.
  8. Em maio de 2020, a Equipe Diamante, especializada no manejo de javaporcos, fazia uma caçada em Ribeirão do Pinhal, sul do Paraná, quando Natálio de Castro, de 50 anos, foi alvo de um tiro e morreu.
  9. Em agosto de 2021, a vítima foi Paulo César da Silva, de 43 anos, atingido por um colega caçador que o confundiu com um javali, em Itanhandu (MG).
  10. Em outubro de 2019, o caçador Edson Silva de Lima Filho, de 37 anos, foi morto com um tiro disparado acidentalmente pela arma de outro caçador, em Olímpia (SP).
  11. No dia 25 de julho de 2019, o caçador Luiz Vizolli, de 60 anos, morreu ao ser atingido por um tiro de sua própria arma quando caiu da estrutura de madeira montada para caçar javalis, em Nova Ubiratã (MT).
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