Por que São Sebastião cresceu tanto e tem risco de novas tragédias?

Cidade do litoral norte de SP mais afetada por chuva de 2023 teve meio século de investimentos em rodovias e petróleo; alta populacional no período foi 5 vezes maior do que aumento no Brasil

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Por Priscila Mengue
Atualização:

Pode-se dividir o último meio século de São Sebastião em três fases: essencialmente caiçara, balneário de veraneio e polo logístico e energético. A crescente interligação com o entorno e a atratividade de empregos criaram um boom populacional não acompanhado de infraestrutura e políticas públicas suficientes. Isso ficou mais evidente há um ano, quando deslizamentos vitimaram 64 pessoas no município após chuva extrema.

O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgado meses após a tragédia no litoral norte de São Paulo reafirma a mudança: a população de São Sebastião cresceu o dobro da média nacional, chegando a 81,5 mil moradores. O salto é ainda maior na comparação histórica dos últimos 50 anos, com aumento de 579% - quase 5 vezes a alta na média nacional, de 118% no período.

Mais afetada pelos deslizamentos de fevereiro passado, Vila Sahy foi criado há décadas em área a norte da rodovia Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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O rápido incremento populacional é um alerta diante da valorização da região, expansão de casas de veraneio, do relevo, políticas públicas insuficientes e avanço das mudanças climáticas, que devem aumentar a intensidade e a frequência de eventos extremos.

Uma das principais questões é que há menos áreas planas que a demanda por casas (permanentes ou de veraneio) e que os locais mais seguros são, em geral, justamente nas proximidades das praias. Ou seja, mais caros.

Na Vila Sahy, onde estava a maioria das vítimas de 2023, parte dos moradores não quis se mudar - ficar perto do trabalho é uma das principais razões. “Minha vida inteira está aqui. Não dá para mudar de casa como quem muda de roupa”, diz o motorista de ônibus José Raimundo Silva, de 62 anos, dono do último sobrado da rua - ao menos quatro casas do quarteirão foram abaixo há um ano.

Procurada pelo Estadão, a Prefeitura de São Sebastião diz que faz investimento de quase R$ 193 milhões em obras de drenagem e redução de riscos após a tragédia do ano passado. A maior parte ocorre na Vila Sahy.

O governo estadual também destaca obras de reconstrução, como de uma escola recém-entregue, e de casas para uma parte dos atingidos, mas os números seguem abaixo da demanda habitacional. O Executivo paulista diz ter investido mais de 1 bilhão em ações para o litoral norte, entre novas moradias, linhas de crédito para economia e turismo, obras de infraestrutura, prevenção e incentivos.

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Outro dado do IBGE expõe o problema: desde 1970, o total de domicílios cresceu 1.108% no município. O incremento envolve tanto novos moradores quanto frequentadores de casas de veraneio.

O eixo formado por São Sebastião, Ubatuba e Caraguatatuba tem 40% dos domicílios voltados ao chamado “uso ocasional”. Como comparação, a taxa é de 27% na Baixada Santista.

Com os terrenos planos valorizados, parte da população caiçara se moveu para o interior do município, aproximando-se da Serra do Mar. Essas áreas também se tornaram uma das poucas opções para os migrantes, atraídos pela crescente oferta de emprego, especialmente na construção civil (de casas de veraneio), no turismo, no porto e no setor energético.

Embora parte do avanço rumo às áreas verdes envolva empreendimentos de alta renda, a população pobre acaba mais vulnerável a eventos climáticos intensos diante da falta de qualidade das moradias e urbanização. Como o Estadão mostrou, antes da tragédia, São Sebastião já acumulava condenações na Justiça há anos pela demora em reduzir o volume de áreas de risco, inclusive na Vila Sahy.

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Nota técnica do MapBiomas - rede colaborativa, formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia - também traz indicadores da expansão desordenada. Os pesquisadores identificaram aumento de 4,5 vezes nas áreas urbanizadas de São Sebastião, entre 1985 e 2021 (enquanto a média nacional foi de cerca de 3 vezes). Nos assentamentos precários, o incremento foi de 15,4 vezes.

“Em geral, o crescimento urbano e os assentamentos precários estão localizados entre a estrada e as encostas da Serra do Mar”, diz a nota técnica. A análise destaca que os locais com maior incremento de ocupação urbana desde os anos 2000 tem sido a norte da Rio-Santos, como na Vila Sahy.

Em meio a essas desigualdades, o município tem PIB per capita mais de quatro vezes maior que a média nacional e recebe royalties de exploração do petróleo.

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Historicamente, a transformação do litoral norte está ligada à criação e melhorias de acessos, especialmente a pavimentação da Rio-Santos, nos anos 1970 e 1980 — que atraíram turistas, atraídos pela beleza cênica da região.

Os setores energético e logístico tiveram incremento nessa época (com o terminal da Petrobras), mas a expansão foi maior com a descoberta do pré-sal, a ampliação do Porto de São Sebastião e obras rodoviárias, como a nova Tamoios.

“Há relatos de pesquisadores há 30 anos mostrando esse boom de casas de veraneio na costa sul, com a beleza cênica como grande moeda de troca”, cita Beatriz Pierri Daunt, pesquisadora de transformações urbanas em pós-doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona. Ela aponta que a expansão rodoviária e a implementação do terminal da Petrobras naquela época faziam parte de uma política desenvolvimentista.

A expansão não se preparou, contudo, para os efeitos das mudanças, resultando em “espaços de desigualdade”. Em São Sebastião, pelas características de relevo e da serra mais próxima do mar, isso fica ainda mais evidente do que nas cidades vizinhas.

Para a pesquisadora, um grande plano de ações para a região envolve repensar o uso e a ocupação do solo, especialmente quanto às casas de uso ocasional — que têm acesso à melhor infraestrutura, mas ficam esvaziadas a maior parte do tempo, enquanto a população vive em locais em piores condições.

“A crise climática não coloca todo mundo no mesmo barco. Quem paga pela alteração na costa, pelo solapamento da Serra do Mar, é a população marginalizada e que não tem acesso ao serviço público de qualidade”, afirma Beatriz. “É preciso implantar políticas sociais de coragem para reorganizar o território.”

Diretor executivo da Federação Brasileira de Geólogos (Febrageo), Fábio Augusto Reis afirma que o problema maior é a falta de planejamento integrado, a médio e longo prazo e que reúna os municípios do entorno da Serra do Mar, ainda mais diante do passivo de ação insuficiente nesse âmbito por décadas. “Áreas de risco já têm mapeamento. Todo ano tem de ter obra”, diz.

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Professor de Geotecnia e Meio Ambiente na Unesp, ele avalia que falta olhar mais amplo no planejamento, menos isolado. Um exemplo que cita é a necessidade de que as concessões rodoviárias não se preocuparem apenas com a pista, por exemplo. Outro caso são de empreendimentos imobiliários que não compensam o suficiente os efeitos, como de impermeabilização do solo.

Para a diretora substituta do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), Regina Alvalá, o Brasil avançou no monitoramento de desastres na última década, especialmente após o desastre na região serrana do Rio, de 2011. Em São Sebastião, são 18 pluviômetros automáticos, que recebem dados a cada 10 minutos no caso de chuva.

“Há 20 ou 30 anos, não tínhamos essa estrutura no País. Mas é suficiente? Quando pensamos na gestão integrada do risco de desastres e ações de reduções de riscos, ainda se fazem necessários mais avanços. Os municípios precisam investir em plano de preparação e prevenção, estabelecer rotas de fugas, estruturar defesas civis, para entender alertas e agir a tempo”, destaca. “Gastos de prevenção sempre são mais baratos que de recuperação.”

Estado instalou sirenes e radar meteorológico na região

O governo de São Paulo, em nota, destacou a entrega de 704 unidades habitacionais em Maresias e na Baleia Verde - que será feita nesta segunda-feira, 19 -, em São Sebastião, destinadas a parte das famílias atingidas no temporal de fevereiro, de locais como a Vila Sahy, Boiçucanga, Juquehy e outros.

A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) também ressaltou que outros 256 apartamentos estão em fase de contratação em Topolândia, no mesmo município.

Além disso, afirmou ter se comprometido a “atender com unidade habitacional definitiva todas as famílias que saírem voluntariamente da Vila Sahy” e que as famílias diretamente atingidas pela tragédia não precisarão pagar pela nova moradia, que ocupam por meio de um termo de permissão de uso, no qual se comprometem em alguns pontos, como não ter a propriedade de outro imóvel.

Destacou, ainda, a instalação de sirenes pela Defesa Civil , a implantação de um novo radar meteorológico em Ilhabela (com capacidade para monitorar toda a costa paulista) e a realização de simulados e treinamentos com moradores.

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Já a prefeitura, da gestão Felipe Augusto (PSDB), diz que “a intenção das obras é prevenir futuros problemas ao estabelecer um sistema de drenagem com a capacidade de lidar com grandes volumes de chuva em curtos intervalos de tempo”.

O pacote de intervenções incluem limpeza e terraplanagem, contenções com concreto projetado, plantio de vegetação, barreiras flexíveis e muros de gabião (estrutura de pedra e fios de aço).

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