A discussão sobre diversidade e inclusão ganhou amplo apoio de grandes empresas no Brasil nos últimos anos com o avanço da agenda ESG. Algumas companhias, inclusive, criaram setores e núcleos desenvolvidos especificamente para o desenvolvimento destas práticas e inclusão de pessoas LGBT+.
Os resultados foram percebidos, por exemplo, nos patrocínios à Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Em 2013, a associação que organiza o evento reclamou publicamente da falta de apoio, destacando que as empresas tinham receio de associar suas marcas ao público da comunidade. Dez anos depois, em junho de 2023, a parada teve o patrocínio de 19 empresas — seis a mais do que em 2022.
Apesar dos avanços, especialistas destacam que a maioria das empresas ainda permanece apenas no discurso, com poucas ações efetivas (ou concentradas no Dia Internacional do Orgulho LGBT, comemorado nesta quarta-feira, 28) e que, de fato, mudem a realidade da população LGBT no mercado de trabalho.
Há, inclusive, pontos de atenção que ameaçam a agenda da diversidade, como no caso da versão mais leve da famosa Budweiser, a Bud Light, da AB InBev. Em abril deste ano, a empresa sofreu boicote de grupos conservadores dos Estados Unidos após uma ação publicitária com a influenciadora transgênero Dylan Mulvaney. Por causa disso, a marca perdeu o posto de mais vendida do país.
Obstáculos à agenda
Uma semana antes do caso, a VP de marketing da Bud Light, Alissa Heinerscheid, afirmou ao podcast Make Yourself at Home que a marca estava em declínio e que, sem novos consumidores, era preciso mudar de estratégia.
“Se não atrairmos novos consumidores, não haveria futuro para a Bud Light. Eu tinha muito claro essa ideia”, afirmou, explicando o que motivou a marca a incluir mais diversidade em suas campanhas.
A inclusão de diversidade se tornou nos últimos anos uma das principais preocupações das companhias, destacam especialistas. Grandes empresas apostam em campanhas, ações e propagandas para se mostrarem diversas e pró-inclusão.
A estratégia, no entanto, já irritou consumidores de diversas marcas, principalmente nos Estados Unidos, onde o fenômeno tem acontecido com companhias com imagens já consolidadas perante os consumidores.
Ameaças de boicotes e críticas de grupos conservadores atingiram gigantes do varejo como a Disney. A Target removeu produtos LGBT de sua marca Pride Collection em maio, após uma reação negativa de clientes. Também foram alvo a empresa dona da marca M&M’s e a Starbucks, acusada por sindicatos de restringir as decorações comemorativas do mês do orgulho LGBT.
Especialistas destacam que pessoas contrárias sempre irão existir, mas é preciso observar o comportamento das empresas nestes momentos. “Recuos das empresas são previsíveis, mas apontam para algo: a consistência. Eles acabam servindo como situações de diferenciação. Você consegue separar quem de fato está participando de uma discussão de forma consistente ou quem estava ali seguindo uma onda”, afirma o CEO da Mais Diversidade, Ricardo Sales.
Ele destaca que o caso da Bud Light é emblemático. “Ela retirou o post do ar, cedeu às pressões de conservadores, demitiu pessoas da diretoria de marketing”, afirma. Para ele, há o crescimento de um conservadorismo no debate público.
Procurada, a AB InBev afirmou que está “comprometida com os programas e parcerias que estabeleceu ao longo de décadas com organizações para impulsionar a prosperidade econômica em várias comunidades”. A empresa ainda disse que tem um “forte histórico de liderança no setor no apoio à comunidade LGBTQ+”. “Nos últimos 20 anos, apoiamos organizações sem fins lucrativos locais e nacionais comprometidas em defender a igualdade LGBTQ+”, disse.
Sales reconhece que as empresas avançaram nos últimos anos em prol da diversidade, mas o grande momento de “prova” para as empresas serão as crises. “É na crise, muitas vezes, que a gente vai conhecer qual é o grau de comprometimento com a comunidade e a própria agenda ESG. Até que ponto é legítimo usar direitos humanos como estratégia de marca?”
“Quando a gente vê uma empresa envolta em uma crise imensa, temos que ter menos atenção no que já foi feito. É mais no ao vivo. É entender como essa empresa vai reagir agora. Ela vai reforçar suas políticas? Ou vai sair pela tangente e apagar o post, mandar aquela nota institucional para a imprensa de ‘sentimos desculpa se alguém se sentiu ofendido’, que não diz absolutamente nada”, afirma.
Para os especialistas consultados pelo Estadão, embora este cenário esteja se desenhando nos Estados Unidos, o Brasil também precisa ter atenção com uma onda conservadora contrária aos direitos dos LGBT.
Onda conservadora no Brasil
Sales cita como exemplo os cortes de beijos lésbicos na novela Vai na Fé, a suposta mudança de horário no especial da Globo Falas de Orgulho, além da retirada da bandeira LGBT do Theatro Municipal neste mês, ordenado pela Fundação Theatro Municipal — considerado um “ataque à comunidade LGBT” por artistas e trabalhadores do local, que protocolaram um abaixo-assinado contra a ação.
Para a gerente sênior de direitos humanos do Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil, Tayná Leite, o aumento de um “conservadorismo anti-LGBT” já é uma realidade no Brasil.
“A gente vê um crescimento no Legislativo, na própria sociedade e principalmente com a população trans. A sociedade como um todo tem se movimentado em direção a um conservadorismo pautado em moral e costumes tradicionais, retornando ao conceito de sociedade heteronormativa, branca e de papéis tradicionais.”
Ela destaca, no entanto, que este cenário conservador não significa que empresas realmente engajadas não estejam avançando. “São movimentos que estão acontecendo ao mesmo tempo”, afirma, destacando que hoje a agenda 2030, que tem como um de seus focos o aumento da diversidade, não é opcional, não só do ponto de vista do consumidor exigir da marca posicionamentos assertivos, mas também por conta do legislativo e dos próprios investidores. “O Brasil ratificou a agenda como um compromisso do país. Para ser atingido é preciso que as empresas façam a sua parte.”
“Casos como os dos Estados Unidos podem acontecer no Brasil se a empresa não está pensando em como trabalhar a agenda ESG. Estamos vendo coisas que pareciam estar asseguradas voltando a ser questionadas dentro e fora do Brasil.”
Para o CEO da Mais Diversidade, o que diferencia os dois países é que o grau de “radicalização” da sociedade norte-americana é maior do que a brasileira. “Além disso, lideranças republicanas têm mobilizado eleitores do partido naquilo que é muito caro a eles, a defesa do capitalismo e do livre mercado. Essas lideranças têm argumentado que a única finalidade de uma empresa é a geração de lucro, ignorando os chamados a uma maior responsabilidade social e ambiental”.
A percepção de um aumento de conservadorismo, no entanto, não é unânime. A fundadora da consultoria Integra Diversidade, Keyllen Nieto, destaca que o cenário visto nos Estados Unidos é muito específico e um desdobramento do retrocesso de outras pautas sociais.
“É uma aceleração do retrocesso de pautas sociais que vinham se consolidando como as pautas étnico raciais, dos LGBT e as pautas ESG, que vem sendo rejeitadas por investidores e diversos consumidores”, afirma, destacando que, se um caso similar ao da Bud Light tivesse acontecido no Brasil, “seguramente haveria uma mobilização popular”.
A especialista destaca que embora o país ainda tenha que avançar muito não só na pauta LGBT e de outros minorizados, estamos progredindo. “O Brasil está unicamente focado em pautas impulsionadas por quatro países da Europa em conjunto com Estados Unidos e Canadá. Essa visão, muitas vezes, impede que vejamos os avanços nacionais. Muito do que as empresas têm feito é marketing, de fato, mas se comparado com dez anos atrás, é um outro cenário.”
Mercado de trabalho
É consenso entre os especialistas que houve avanços nos últimos anos. A maioria destaca que, de fato, a propaganda é muito relevante — principalmente se considerarmos a mudança em relação a anos anteriores. “Representatividade importa. Eu sou de uma geração que cresceu sem se ver na publicidade. A questão é que é preciso unir propaganda e também ações efetivas”, afirma o CEO da Mais Diversidade, Ricardo Sales.
“Colocar o arco íris já é alguma coisa, mas não pode parar por aí. É preciso sair de um post, do ambiente virtual e promover algo concreto”, afirma o coordenador de Captação e Parcerias da Casa1, Angelo Castro.
Para ele, o apoio que as empresas dizem dar para a comunidade LGBT ainda não tem sido revertido para a base. “Existe uma disparidade enorme. Até mesmo a entrada das pessoas trans no mercado de trabalho, por exemplo, é marketing. Vemos propostas, mas sem uma preparação efetiva para que essas pessoas fiquem na empresa, contribuam, coloquem a sua visão e tenham um plano de carreira.”
Castro destaca que é possível dizer que, para algumas empresas, a inclusão de pessoas trans é para elas servirem de “cartão de visita”, sem uma modificação cultural no ambiente de trabalho para que essa pessoa não sofra algum tipo de discriminação.
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Ele diz conhecer casos de pessoas que são trazidas para as empresas e preferem não seguir por não se sentirem confortáveis no ambiente. “Em que momento as empresas vão parar de se preocupar em dizer quantas pessoas trans tem no quadro de funcionários e, de fato, fazer modificações?”
“Na base a gente não sente diferença. Acho que tem empresas que têm trabalhos efetivos e conseguem desenvolver, mas é mais demorado do que parece e não é tão midiático.” Ele diz acreditar que talvez o tom deva mudar, pois da forma como é destacado na mídia, parece que todo o problema foi resolvido apenas com ações pontuais.
“É importante deixar claro que a empresa que faz uma ação não está acabando com a homofobia, mas ajudando uma ONG ou um público. O verdadeiro foco desta discussão tem que ser as pessoas LGBT, a diminuição de desigualdade e de violência.”
Castro destaca que é sempre questionado pela imprensa sobre as mudanças no mercado de trabalho e embora veja avanços, não consegue mensurar tantas mudanças. “Muito pouco existiu até hoje, ninguém está olhando para essas questões. A gente nunca chegou a um patamar de acesso a políticas públicas para poder mensurar se regrediu ou progrediu. Ainda falta muito para gente ter o básico”.
Marcas devem ter alinhamento sincero com a causa
O Estadão procurou empresas de diversos setores para entender se eles acreditam que um cenário similar ao dos Estados Unidos poderia acontecer no Brasil. A maioria afirmou que preferia não se envolver nesta discussão.
Para Tayná Leite, representante do Pacto Global da ONU, é compreensível essa resistência. “A pauta desperta emoções intensas para ambos os lados. É a antítese do ambiente de negócios historicamente, em que é exigido previsibilidade e estabilidade”, afirma, destacando entender as empresas que preferem falar menos e não correr o risco de “escorregar”, preferindo optar por ações efetivas.
“É muito difícil se posicionar quando o problema não foi resolvido, alguém vai apontar algum erro. É mais importante olhar para as políticas estruturais e o que está sendo feito pela organização”, destaca, afirmando que neste sentido as lideranças, que são ocupadas apenas por 8% de pessoas LGBT no Brasil segundo um estudo da consultoria global Great Place To Work (GPTW), tem papel essencial para o desenvolvimento de políticas sérias nas empresas.
Ela destaca que muito ainda precisa ser feito, de fato, mas afirma que estes processos levam tempo. “A frustração e angústia de quem está na ponta é legítima, a pauta é urgente, mas também complexa. As empresas precisariam fazer mais. Contexto social não muda do nada. Cada real investido pelas empresas vai levar um tempo para reverter em ação.”
Para Denise Coutinho, diretora de Marketing da Natura Brasil, que já enfrentou ameaças de boicote ao convidar o influenciador Thammy Miranda para participar da campanha de Dia dos Pais da empresa em 2020, o temor não pode barrar iniciativas das empresas. “Sempre há a possibilidade de crítica, mas isso não pode impedir que as pessoas e empresas se posicionem. Adotar uma postura em prol da diversidade já não pode ser considerado um diferencial”, diz.
A diretora de balas e gomas da Mondelēz Brasil (responsável por marcas como Trident, Halls e Bubbaloo), Anna Carolina Teixeira, é da mesma opinião. Ela destaca que o que motivou as reações nos Estados Unidos foi o quanto estas marcas já eram autoridades no assunto antes de suas campanhas - gerando choque com o público mais conservador, que não atrelava a imagem de muitas destas marcas à comunidade.
“O grande ponto que eu acredito que aconteceu, uns menos do que outros, é como a marca entende o seu próprio lugar. Na sua campanha do dia a dia você já está dando o tom das causas que apoia. Quem te consome durante o ano inteiro não vai se surpreender em te ver em uma campanha em prol da comunidade. A campanha vai ser coerente. Não vai ter motivo de fuga de consumidores que vá causar algum prejuízo”, afirma.
Para ela, é de fato mais difícil trabalhar determinadas pautas dependendo do público que você já tem como fiel. Ana destaca que o público já espera, por exemplo, um posicionamento pró-diversidade da Trident, por ser uma marca que tem como alvo um público mais jovem, mas pode estranhar determinado posicionamento de uma marca que sempre se colocou como conservadora. “Precisa fazer parte do contexto da marca.”
Ela defende que o posicionamento da marca não pode apenas acompanhar uma agenda, mas respeitar o próprio negócio, os valores intrínsecos e o público. “A grande questão é você ter autoridade dentro do assunto para falar sobre aquilo. Se o seu objetivo é atingir todo mundo, acho que há chance de você ter uma devolutiva ácida. É muito difícil agradar todo mundo.”
Para ela, quando o posicionamento está, de fato, alinhado com a marca, até mesmo as ameaças de boicote não preocupam. “A gente vai ser fiel independente de ter qualquer movimento contrário. Mesmo dentro do nosso público que é jovem, alguns rebatem as campanhas, sugerem retaliação, mas a comunidade acredita no nosso posicionamento e saem em nossa defesa”.
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O CEO da Mais Diversidade, no entanto, destaca que embora os avanços devam ser reconhecidos e celebrados, ele lamenta que as ações continuem se concentrando no Dia Internacional do Orgulho somente.
“No dia 29 de junho o mundo volta a ser cinza. Cadê as marcas? No mês de junho o foco é muito maior na propaganda. Ela tem muito valor, mas publicidade sozinha não se sustenta. Discurso ajuda a formar imagens, mas isso tem que vir acompanhado de ações efetivas e que demonstrem o comprometimento com as comunidades. Isso é trabalhar o S de ESG de uma forma muito mais ampla”.
Ele finaliza, inclusive, criticando a imprensa, brincando que em junho a sua agenda está sempre lotada, mas no próximo mês a mídia deixa de abordar a causa com tanta ênfase, contribuindo para que os problemas se perpetuem.