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Vídeo desinforma sobre fuga de detentos em Mossoró ao ligar fatos sem relação entre si

Sem evidências, postagem faz alegações inconsistentes para sugerir orquestração da atual gestão para que o fato ocorresse

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O que estão compartilhando: vídeo no qual homem aponta diversos fatos relacionados ao Ministério da Justiça, ao presídio federal de Mossoró (RN) e à fuga de dois detentos. Ao final, ele diz que “eles estão dando o recado com essa fuga” e recomenda “cuidado” ao ex-presidente Jair Bolsonaro. A legenda sobrescrita ao vídeo diz “Fuga dos prisioneiros foi planejada para execução de Bolsonaro”.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: não há evidências e há inconsistências nas alegações feitas. O vídeo analisado levanta uma série de acontecimentos, sem relação entre si, para desinformar sobre a fuga de Rogério da Silva Mendonça e Deibson Cabral Nascimento, apontados com ligação com o Comando Vermelho (CV), da Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte.

Penitenciária Federal de Mossoró Foto: Reprodução/Google Earth

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Na madrugada de 14 de fevereiro, a dupla de detentos fugiu da unidade de segurança máxima. É a primeira registrada na história da rede penitenciária federal. Na segunda-feira, 19, o ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Ricardo Lewandowski, autorizou o uso da Força Nacional em Mossoró.

O Estadão mostrou que os dois homens utilizaram barras de ferro para ampliar o buraco da luminária por onde passaram, com uso de um pano na ponta do bastão para abafar o barulho. Lewandowski explicou que Rogério e Deibson escalaram uma luminária, chegaram ao teto e acessaram o setor onde é feita a manutenção da penitenciária.

No local, a dupla teria pegado ferramentas que estavam sendo utilizadas na obra. Em consequência da reforma, o local estava protegido apenas por um tapume de metal. Assim, os dois homens encontraram uma brecha e cortaram o alambrado de proteção com um alicate recolhido no setor de manutenção.

A alegação de que eles estariam se preparando para cometer crimes contra o ex-presidente Jair Bolsonaro carece de embasamento. Não há, até o momento, nenhuma informação pública de que os órgãos de investigação tenham detectado tais intenções.

Saiba mais: em um vídeo com duração de mais de cinco minutos, um homem identificado como coronel da Polícia Militar (PM) sugere que os dois fugitivos da penitenciária de segurança máxima escaparam com conivência do governo federal para assassinar o ex-presidente Jair Bolsonaro. Não foi possível confirmar a identidade do homem que teoriza sobre o episódio.

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Para argumentar a teoria conspiratória, ele cita algumas “coincidências” que envolveriam o Ministério da Justiça e Segurança Pública e os dois fugitivos. As “provas” apresentadas, no entanto, têm uma série de inconsistências.

Visita de Flávio Dino à Favela da Maré e nomeação de diretor

O responsável pela postagem inicia o vídeo citando a visita do então ministro da Justiça Flávio Dino ao Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em março de 2023. Ele estava no local para se reunir com lideranças comunitárias. À época, perfis nas redes sociais impulsionaram uma campanha de desinformação sobre o comparecimento do ministro ao local. O Estadão Verifica desmentiu, por exemplo, que Dino estivesse no evento sem escolta policial.

De acordo com o homem, a primeira “coincidência” seria que Humberto Gleydson Fontinele Alencar, diretor afastado da Penitenciária Federal de Mossoró, foi nomeado para o cargo um mês após a visita de Dino à Maré. O autor do vídeo ressalta que a Maré é dominada pelo Comando Vermelho (CV), facção à qual os dois fugitivos possuem ligação, sugerindo uma conexão entre os fatos. De fato, Rogério e Deibson são apontados como integrantes da facção, mas ambos atuavam no Acre, e não no Rio de Janeiro.

Além disso, Dino não esteve no Complexo da Maré para se reunir com líderes de facções criminosas. À época, esse boato foi amplamente disseminado e desmentido pelo Projeto Comprova e Estadão Verifica. O então ministro da Justiça havia visitado a comunidade a convite da ONG Redes da Maré, para participar do lançamento da 7ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré.

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Dessa forma, não há nenhuma evidência de que Humberto tenha sido nomeado em decorrência da agenda cumprida por Dino em março de 2023. De acordo com o currículo do diretor, afastado após a fuga dos detentos, ele atuava na Penitenciária Federal de Mossoró desde 2010, quando atuou como chefe substituto da Área de Inteligência. Desde então, ele trabalhou em diversas áreas do presídio.

Transferência dos presos para Mossoró

Em sequência, o homem diz que os dois fugitivos teriam sido transferidos para Mossoró no mesmo mês em que Humberto assumiu a diretoria da penitenciária. As datas, contudo, não conferem com a realidade. A nomeação de Humberto consta no Diário Oficial da União (DOU) em 17 de abril de 2023, assinada por Ricardo Cappelli, ex-secretário-executivo do ministério. Já os criminosos foram transferidos do Acre em setembro do ano passado, após participarem de uma rebelião em um presídio.

Falhas no sistema de segurança já eram conhecidas há anos

O conteúdo analisado também afirma que seria quase “impossível” que os detentos Rogério da Silva Mendonça e Deibson Cabral Nascimento tenham fugido sem a “facilitação” ou, até mesmo, “com a ordem” de alguém. O presídio, contudo, tinha falhas na estrutura, registradas ao menos desde 2019.

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De acordo com o blog da jornalista Julia Duailibi, do g1, um relatório do Ministério da Justiça apontou que as câmeras de segurança do presídio já não funcionavam corretamente em 2019. À época, um detento roubou a arma de um agente e fez ameaças. Nada foi registrado, porque as câmeras estavam inoperantes.

Em maio de 2021, o relatório da Divisão de Inteligência da Penitenciária Federal de Mossoró apontou que 124 câmeras estavam inoperantes na unidade em meio aos 192 equipamentos instalados. A qualidade das câmeras que funcionavam e baixa área de cobertura dificultaram a visualização da movimentação da fuga, segundo reportagem exibida pelo Fantástico neste domingo, 18.

Já outro relatório, elaborado em agosto de 2023, apontou uma vulnerabilidade da área existente atrás das luminárias das celas, de acordo com o Fantástico. Esse problema foi aproveitado pelos fugitivos, já que foi por essa área que os dois escaparam.

“Essas falhas estruturais, que são antigas porque os presídios foram construídas de 2006 em diante, podem existir em alguns lugares. Aqui foram corrigidas imediatamente. Estamos avaliando se essas falhas se repetem em outros presídios”, afirmou, neste domingo, o ministro Lewandowski em coletiva de imprensa.

Ministro Lewandowski viajou a Mossoró neste domingo, 18, para acompanhar as buscas  Foto: Jamile Ferraris/MJSP

O que diz o governo federal

Na mesma coletiva, o chefe da pasta disse que não é possível afirmar se houve participação de agentes penitenciários na fuga antes do término das apurações. Lewandowski ressaltou, contudo, que todas as hipóteses estão sendo investigadas. Os inquéritos, nos âmbitos administrativo e policial, possuem um prazo de 30 dias para a conclusão, com a possibilidade de serem prorrogados por mais um período.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por outro lado, sugeriu a possibilidade de os fugitivos terem recebido ajuda para escapar do prédio de segurança máxima. Lula afirmou que a primeira pessoa que disse que faria uma sindicância para apurar uma eventual participação de algum funcionário do presídio foi Lewandowski.

“Estamos à procura dos presos, esperamos encontrá-los, e, obviamente, queremos saber como é que esses cidadãos cavaram um buraco e ninguém viu. Só faltaram contratar uma escavadeira. Eu não quero acusar, mas, teoricamente, parece que teve conivência com alguém do sistema lá dentro”, afirmou o petista durante coletiva de imprensa na Etiópia.

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Ao Estadão Verifica, o Ministério da Justiça afirmou que as investigações estão sob sigilo. “Qualquer informação a respeito das linhas investigativas, elementos, porventura, já levantados, estágio da investigação e afins, correm em sigilo para preservação da atuação da Polícia Federal e da Corregedoria da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen)”.

Em nota divulgada neste sábado, 17, a Federação Nacional dos Policiais Penais Federais, que congrega o sindicato de servidores dos cinco presídios federais do Brasil, disse acreditar que não houve planejamento prévio por parte dos criminosos, e “sim uma oportunidade que foi aproveitada e obtiveram êxito”. A categoria afirma que espera as apurações e que “havendo responsáveis, que respondam pelas suas ações e/ou omissões na forma da lei”.

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