Terrorismo do Hamas despedaçou o legado de Netanyahu. A guerra o salvou - mas por quanto tempo?

O ataque sobre Gaza congelou quase completamente o turbulento sistema político israelense, mas o primeiro-ministro continua com forte oposição de todos os lados do Parlamento de Israel

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Por Joshua Leifer (The New York Times)

Assim que a devastadora guerra de Israel na Faixa de Gaza terminar, o conflito não concluído dentro de Israel sobre o futuro do país recomeçará. O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e seus parceiros direitistas de coalizão sabem disso. O que pode explicar, em parte, por que eles estabeleceram a improvável meta de “vitória total” enquanto objetivo definitivo e por que até aqui eles têm recusado qualquer acordo que ponha fim aos combates em troca da libertação dos cerca de 100 reféns ainda mantidos pelo Hamas. Depois de quase seis meses, esta guerra já é o conflito mais longo de Israel desde sua guerra de independência.

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O ataque sobre Gaza congelou quase completamente o turbulento sistema político israelense. Debates ferozes no passado foram colocados em passo de espera. Mesmo os críticos mais estridentes de Netanyahu buscaram evitar ser definidos como traidores durante um período em que cartazes massivos declarando “Juntos venceremos” foram pendurados em arranha-céus. Por meses, todo o país parece ter se unido em apoio à guerra. Determinado a manter o conflito arrastando-se e sem ser onerado por nenhuma oposição real, Netanyahu também guiou Israel para uma colisão frontal com seus apoiadores mais significativos, os Estados Unidos, colocando suas considerações políticas de curto prazo à frente dos interesses israelenses de longo prazo.

Nas semanas que se seguiram à infame incursão do Hamas em 7 de outubro, o futuro político de Netanyahu parecia obscuro. O primeiro-ministro gabava-se havia muito a respeito de seus mais de 15 anos no poder terem sido os mais seguros já vividos em Israel; o ataque do Hamas despedaçou esse legado. O homem que descrevia a si mesmo como “Sr. Segurança”, que dizia esperar ser lembrado como “o protetor de Israel”, pareceu responsável pelo dia mais mortífero na história do país. Desde então, mesmo enquanto comandantes militares e chefes de inteligência vieram a público assumir culpas, Netanyahu recusou-se explicitamente a reconhecer sua própria culpabilidade.

Israelenses protestam contra o governo do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, e por um acordo com o grupo terrorista Hamas que liberte os reféns que estão na Faixa de Gaza  Foto: Leo Correa / AP

Uma pesquisa publicada em janeiro constatou que apenas 15% dos israelenses querem que o primeiro-ministro permaneça na função depois da guerra. E em outra pesquisa recente, do Canal 13 de Israel, a maioria dos israelenses afirmou que não confia na maneira que Netanyahu conduz a guerra. O apoio ao partido de direita do primeiro-ministro, o Likud, também erodiu.

E, mesmo assim, Netanyahu permanece no poder — em grande medida incontestado.

Por aproximadamente 39 semanas antes do início da guerra, centenas de milhares de israelenses tomaram as ruas de cidades em todo o país todos os sábados, manifestando-se contra a agenda de extrema direita do governo de Netanyahu e particularmente contra seu plano de tolher absolutamente o poder do Judiciário israelense. Depois do 7 de Outubro, no mesmo momento que Netanyahu ficou mais impopular do que jamais havia sido, o movimento social que tinha emergido para desafiar seu governo se calou quase totalmente.

Ao mesmo tempo, Netanyahu manobrou habilidosamente para driblar seu rival mais importante, o ex-chefe do Estado-Maior israelense Benny Gantz, que trouxe seu partido, Unidade Nacional, para a coalizão emergencial de Netanyahu após o ataque do Hamas como uma mostra de responsabilidade patriótica. A transição da guerra de um imenso bombardeio aéreo e uma invasão terrestre em escala total para uma contrainsurgência excruciante evitou que Gantz e seu partido deixassem o gabinete — e permitiu a Netanyahu afastar uma nova rodada de eleições.

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Benny Gantz, membro do gabinete de guerra de Israel e principal adversário do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, participou de uma reunião com membros do Congresso americano em Washington, Estados Unidos  Foto: Shuran Huang/NYT

Mas os debates não concluídos e fundamentais sobre o caráter de Israel não podem ficar em passo de espera eternamente. Conforme os israelenses começam a se ajustar para um estado de guerra permanente — e a violência horripilante e a crise de fome incipiente em Gaza recebem pouca cobertura dos principais meios de imprensa de Israel — o retorno para uma normalidade exígua começa a transformar-se na volta da política usual.

Novas manifestações

Gradualmente, ao longo das semanas recentes dezenas de milhares de israelenses começaram a se manifestar outra vez, principalmente pedindo a libertação dos cerca de 100 reféns que continuam em poder do Hamas. Alguns começaram a pedir a renúncia de Netanyahu, mas seus números não chegam nem perto da profusão das multidões que tomaram as ruas de Israel no ano passado. Após os maiores protestos antigoverno desde o 7 de Outubro, ocorridos no fim de semana passado, o movimento de oposição pode finalmente ter chance de exercer pressão sobre as debilidades fundamentais na coalizão de Netanyahu. Qualquer esperança de estabelecer um novo rumo para o país exigirá a derrubada do atual governo.

Os protestos anteriores à guerra receberam apoio e força de mais de 10 mil reservistas, que prometeram não se apresentar para o serviço militar se o plano da dita reforma do Judiciário fosse adiante. Com a incursão do Hamas, muitos foram chamados de volta às suas brigadas. Mas conforme a guerra mudou e os reservistas foram retornando para suas casas, eles não acudiram em grandes números às barricadas de protesto. Em vez disso, voltaram a trabalhar, voltaram para suas empresas e famílias, que haviam sido colocadas em estado de suspensão. Outros ex-manifestantes simplesmente apoiam mais a guerra do que a saída de Netanyahu. Em uma série de entrevistas ao jornal progressista Haaretz, líderes de vários grupos de protesto expressaram decepção com a realidade de um público com moral baixo demais para continuar a lutar contra a agenda de Netanyahu.

People take part in a protest against Israeli Prime Minister Benjamin Netanyahu's government and call for the release of hostages held in the Gaza Strip by the Hamas militant group outside of the Knesset, Israel's parliament, in Jerusalem, Tuesday, April 2, 2024. (AP Photo/Ohad Zwigenberg) Foto: AP / AP

Gantz, um dos poucos líderes israelenses com capacidade de retirar Netanyahu da função, continuou na coalizão emergencial de guerra não somente em razão de seu apoio continuado ao conflito, mas também para servir de contrapeso aos parceiros extremistas na coalizão de Netanyahu. Como resultado, porém, o partido de Gantz concedeu tanto estabilidade quanto um verniz de legitimidade multipartidária à obstinada coalizão de extrema direita de Netanyahu. Mesmo que Gantz tenha iniciado sua carreira na política para desafiar Netanyahu, ele e seu partido tornaram-se agora a tábua da salvação política do primeiro-ministro.

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Ainda assim, com ou sem a fachada de unidade que Gantz provê, a coalizão de Netanyahu é instável. A maior ameaça à sua permanência é a crise à espreita sobre isenções de obrigatoriedade de cumprimento de serviço militar para os homens da comunidade Haredi, de religiosos ultraortodoxos, que dividiria a coalizão de governo entre seus falcões, que querem vê-los convocados, e os rabinos mais religiosos, que consideram o serviço militar obrigatório para os homens de sua comunidade uma afronta ao seu estilo de vida.

Netanyahu também enfrenta ameaças que emergem na extrema direita — particularmente de Itamar Ben-Gvir, que tem se preparado para desafiar o primeiro-ministro por ter sido brando demais com o Hamas e, alega ele, subserviente demais aos chamados dos EUA por comedimento. O partido de Ben-Gvir, Poder Judaico, foi a única facção na coalizão a votar contra o acordo de cessar-fogo de novembro que levou à libertação de 105 reféns mantidos pelo Hamas. Ben-Gvir também ameaçou retirar seu partido da coalizão de governo na eventualidade de um acordo mais abrangente, que muito provavelmente requereria a soltura de centenas de militantes palestinos presos em penitenciárias israelenses. “Acordo irresponsável = colapso do governo”, tuitou Ben-Gvir em janeiro.

O ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben Gvir, discursa em um funeral de um israelense morto em um tiroteio em um assentamento na Cisjordania  Foto: Abir Sultan/EFE

O medo de Netanyahu de perder apoio à direita pode ajudar a explicar por que ele arquitetou uma amarga briga pública com o governo Biden apesar da dependência quase total de Israel em relação à ajuda militar dos EUA. Michael Milshtein, diretor do Fórum de Estudos Palestinos do Centro Moshe Dayan para Estudos Médio-Orientais e Africanos, e Amos Harel, analista militar do Ha’aretz, observaram que a algazarra de Netanyahu sobre uma futura incursão em Rafah — a cidade no sul de Gaza onde 1 milhão de palestinos deslocados se abrigaram — deve-se mais às considerações pessoais e políticas de primeiro-ministro do que a imperativos estratégicos urgentes. Netanyahu quer não apenas que a guerra continue, quer também unir sua base linha-dura dando a parecer que resiste à pressão dos EUA.

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Mesmo dentro do partido Likud, de Netanyahu, sussurra-se a respeito do “dia depois de Bibi”. Políticos intrépidos começaram a disputar o posto de seu sucessor. O ministro da Defesa, Yoav Gallant, que Netanyahu despediu e logo readmitiu no auge dos protestos do ano passado, tentou definir uma posição ainda mais beligerante sobre a guerra para seduzir eleitores de direita; foi Gallant que, relatou-se, pressionou por um ataque preventivo contra o Hezbollah no Líbano em 7 de outubro. O ex-prefeito de Jerusalém Nir Barkat, atualmente o político mais rico de Israel, tentou cobrar Netanyahu publicamente por administrar mal a crise econômica que acompanhou a guerra. E ainda que grande parte do Likud tenha aceitado o estilo de populismo de direita de Netanyahu, alguns likudistas ostensivamente moderados cansaram-se do primeiro-ministro, mesmo que discordem pouco da maneira que ele conduz a guerra.

A saída de qualquer fragmento da coalizão de Netanyahu anterior à guerra — seja dos extremistas de direita ou dos membros do Likud insatisfeitos — poderia derrubar o atual governo e ocasionar novas eleições. Mas mesmo que eles quisessem retirar Netanyahu, pesquisas atuais mostram que, se eleições ocorressem amanhã, sua coalizão perderia a maioria — uma situação que a extrema direita e os nacionalistas religiosos querem evitar.

O movimento nas ruas deve tornar impossível a continuidade desta coalizão. Ao contrário do que sucedia nas semanas que antecederam o 7 de Outubro, agora existe um consenso popular de que o atual governo perdeu sua representatividade. Seus ministros são desprezados. O movimento de protesto, portanto, precisará canalizar essa fúria e retornar pelo menos à mesma força que exibiu antes da guerra. Os líderes dos protestos terão de fazer o que têm se recusado até aqui: articular e apresentar uma perspectiva alternativa executável para o país que romper com a visão de Netanyahu de que Israel deve “viver eternamente pela espada” — se quiserem aproveitar a oportunidade que a queda de seu governo poderá apresentar.

O movimento, em outras palavras, deve fazer algo que tem sido cada vez mais difícil na atmosfera de medo de conformidade que se seguiu ao 7 de Outubro: ter coragem. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

* Leifer é autor do livro “Tablets Shattered: The End of an American Jewish Century and the Future of Jewish Life”, ainda não publicado

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