É a sabedoria pernambucana. Evaldo Cabral de Mello, mais destacado dos historiadores brasileiros, costuma dizer que se dedica ao período holandês, no século XVII, uma época longínqua, para enxergar melhor o tempo. “Eu detesto História recente, porque você não vê com nitidez as coisas”, avaliou numa entrevista. “A História recente é um negócio perigoso.”
Os políticos não refletem nessa perspectiva. Eles ignoram efeitos colaterais no uso político do passado – talvez seja essa uma essência da vida partidária: impor narrativas e versões. Há momentos, entretanto, que os agentes públicos vão além do ofício de contador de histórias e se aventuram em projetos de construir tumbas, pirâmides e museus para mostrar seu olhar em relação ao tempo. Na brincadeira, esquecem da História que está sendo vivida.
Nada contra criar um museu. A questão é que os políticos geralmente não levam esse tipo de projeto até o fim. Afinal, toda vez que resolveu contar a História recente, a classe recuou logo depois. O painel que retratava a campanha do impeachment de Fernando Collor, exposto no Túnel do Tempo, do Senado, foi retirado assim que o ex-presidente voltou à capital como senador eleito.
A política está repleta também de casos de quem se apressou em fechar um museu dedicado a seu oponente, mas na sequência passou pelo constrangimento de apertar a mão do adversário. Em 2015, um dos primeiros atos de Flávio Dino à frente do governo do Maranhão foi anunciar a “privatização” do Museu da Memória Republicana, sobre o ex-presidente José Sarney, no Mosteiro das Mercês, em São Luís. Acusado de perseguição política, Dino recuou dois dias depois...
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A curadoria do segundo Museu da Democracia vai ter dor de cabeça para montar o roteiro do novo espaço cultural. É difícil imaginar um relato decente da História do dia 8 de Janeiro de 2023 sem explicar quem bancou a proposta política que desaguou na última intentona. Não dá para ignorar a criação do orçamento secreto, um esquema de compra de votos criado por Jair Bolsonaro e as lideranças do Centrão que permitiu a governabilidade de um presidente marcado por um projeto antidemocrático de País.
Os subordinados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva devem achar mesmo que o chefe não depende do Centrão nem da tropa de choque do presidente da Câmara, Arthur Lira, para poder exibir, em Brasília, a foto deles no novo museu. A propósito, o lugar seria uma opção incrível de passeio para as famílias se o Brasil não enfrentasse uma polarização que tornou até os grupos de parentes no WhatsApp infernos de discussão.
Leia análises
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Monica Gugliano: Retrato de ato de Lula pelo 8 de Janeiro não é nada animador para País partido ao meio
Blog Conectado: A linha que une os ataques no Equador, a política argentina e o 8 de Janeiro, no Brasil
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O problema não é nem mesmo construir um museu, mas abrir um incompleto. A propósito, não é apenas no campo político que a ideia do Museu da Democracia pode revelar uma visão turva inclusive sobre a cidade de Brasília. A capital já conta com o Panteão da Liberdade, aberto em 1985, na Praça dos Três Poderes, para falar justamente da luta pela democracia desde os inconfidentes. A memória do 8 de Janeiro poderia ser contada num espaço desse prédio.
Nesta semana, o Ministério da Cultura informou que construirá o novo Museu da Democracia num terreno ao lado do Teatro Nacional, na Esplanada dos Ministérios. Na última vez que tentaram mudar a paisagem da Esplanada com uma nova obra de concreto, em 2009, a cidade e a opinião pública chiaram. E olha que a ideia de uma Praça da Soberania, com um grande obelisco, era simplesmente de Oscar Niemeyer, arquiteto que desenhou os principais prédios da capital.
Muito provavelmente, o governo dirá que o segundo Museu da Democracia será quase invisível, sem prejudicar a escala da cidade planejada, como todo puxadinho e anexo que enfeiam os fundos dos prédios dos ministérios. Difícil é explicar o sentido de gastar R$ 40 milhões num novo espaço cultural ao lado de um teatro que está “em obras”, isto é, fechado há dez anos por falta de verbas.
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Talvez será difícil explicar a necessidade de mais um canteiro no coração de uma capital que está cansada de ver políticos inaugurando museus que, depois, tornam-se prédios ocos, sem acervos importantes. Perto do teatro, do outro lado do Eixo Monumental, o Museu da República e a Biblioteca Nacional, ideias do ex-governador Joaquim Roriz, são templos sem santos dentro. O museu não conta com peças de grandes mestres. A biblioteca, por sua vez, não possui livros raros e, em tempo de chuva, enfrenta goteiras.
A ministra da Cultura, Margareth Menezes, está em Brasília há pouco tempo, mas um de seus subordinados é da cidade. O presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Leandro Grass, poderia contar para ela que as visitas aos museus da capital costumam ser decepcionantes. O Espaço Niemeyer e o Espaço Israel Pinheiro, também no Eixo Monumental, estão sempre fechados – e os acervos são lastimáveis.
A construção do museu dedicado a Pinheiro, primeiro prefeito de Brasília, causou polêmica. O prédio foi construído em 2003 numa área do Bosque dos Constituintes, onde deputados plantaram árvores. A derrubada de 19 delas para erguer a obra recebeu críticas. Com a abertura do espaço, os curadores propagaram que o museu era um lugar dedicado à “sustentabilidade ambiental”.
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Mesmo o grandioso Panteão da Liberdade, que se propôs contar a História da luta democrática desde a Inconfidência Mineira, é um prédio oco. Grass não é do ramo. O sociólogo e ex-deputado distrital ganhou o cargo depois de perder a eleição para governador de Brasília.
Em 2023, o Iphan teve R$ 65 milhões em pagamentos liquidados na área do patrimônio cultural. Este valor seria uma maravilha se a escala usada não fosse a gestão de Bolsonaro, que jogou boa parte das verbas públicas no negócio com o Centrão. Mesmo considerando os recursos gastos em patrimônio cultural por outros setores do governo, o valor investido no ano passado não atinge o registrado em 2006 – R$ 114 milhões, sem atualização inflacionária. Por muitos anos, a Era Bolsonaro será uma muleta para políticos de obras polêmicas e gestores que não entendem da área que governam.