Revisão do zoneamento de SP dificulta demolição de vilas e libera comércio de maior porte em parques

Projeto de lei foi entregue à Câmara na semana passada; previsão é de votação até meados de dezembro, mas Legislativo pretende fazer alterações antes da aprovação

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Por Priscila Mengue
Atualização:

A Prefeitura de São Paulo enviou à Câmara Municipal o projeto de lei de revisão do zoneamento na semana passada com alterações em relação ao texto divulgado pela gestão Ricardo Nunes (MDB) em setembro e tratado em audiência pública virtual na segunda-feira, 2. A proposta de mudanças na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) inclui a ampliação do trecho que dificulta e desestimula a demolição de vilas reconhecidas para todas as zonas da capital paulista e a permissão de comércios de alimentos de maior porte em parques e nas represas.

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O projeto também traz um recuo em relação à redução da poluição sonora. A proposta retira o trecho antes indicado que determinava a exigência do cumprimento do limite de decibéis em residências e adia a entrega do mapa de ruído urbano até 2029.

Além disso, o texto mantém parte das principais alterações indicadas na minuta de setembro, na versão preliminar do projeto. Dentre elas, estão o desestímulo à construção de microapartamentos, a criação de uma zona com normas especiais em área militar perto do Ibirapuera e a delimitação das quadras transformadas e excluídas dos eixos de verticalização, cujas mudanças estão em mapa interativo do Estadão.

Algumas propostas dividem opiniões e são criticadas tanto por pesquisadores do tema quanto por moradores e o mercado. O Sindicato da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP) divulgou um texto assinado por um dos diretores, no qual diz que algumas mudanças seriam “retrocessos”, como o desestímulo aos microapartamentos, por exemplo. Já especialistas ouvidos pelo Estadão consideram que a proposta da Prefeitura precisa de mais tempo de discussão pública e mudanças diversas para atender às demandas apresentadas pela população.

O texto poderá passar por alterações durante a tramitação no Legislativo. Relator da proposta, Rodrigo Goulart (PSD) antecipou em entrevista recente ao Estadão, que fará alterações no texto da Prefeitura, como ocorreu na revisão do Plano Diretor. A estimativa na Câmara é que a primeira votação ocorra em novembro, enquanto a definitiva ficaria para a primeira quinzena de dezembro. Ao menos 25 audiências públicas estão previstas.

O Plano Diretor e o zoneamento são as principais leis urbanísticas da cidade. Enquanto a primeira indica normas, incentivos e diretrizes, a segunda trata da aplicação. Por isso, deve ser uma discussão mais no “detalhe”, “quadra a quadra”, como dizem os vereadores. Grande parte da demanda apresentada por enquanto pela população envolve mudanças no zoneamento de locais específicos.

Em justificativa técnica apresentada em conjunto ao projeto de lei, a gestão Nunes apontou que a proposta “busca facilitar a aplicação da lei de zoneamento vigente, ampliando as possibilidades de adequação da produção imobiliária aos conceitos e diretrizes da política urbana definida pelo Plano Diretor”. Também diz que as contribuições apresentadas pela população nas consultas e audiências públicas foram analisadas e triadas, “conforme a pertinência com a matéria regulada”.

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Vila na região do Ibirapuera que teve a demolição adiada após tombamento provisório Foto: Felipe Rau/Estadão - 31/07/2023

O que pode mudar em relação a comércio em parques e nas represas?

O projeto de lei autoriza o funcionamento de comércio de alimentação para público de até 500 pessoas em Zonas Especiais de Proteção Ambiental (Zepam), mediante autorização de órgão ambiental. Essas zonas correspondem a cerca de 18,4% da cidade e abrangem os parques municipais atuais e previstos no Plano Diretor, o entorno das represas Billings e Guarapiranga e trechos com remanescentes de Mata Atlântica e vegetação nativa em geral.

Hoje, a legislação permite restaurantes, lanchonetes e outros espaços do setor de alimentação apenas em Zepams de parques, porém mediante a avaliação de órgão especializado. Essa liberação costuma envolver atividades de pequeno porte, para até 100 pessoas, inclusive em parques grandes e concedidos à iniciativa privada.

O limite de público de até 100 pessoas é determinado hoje até mesmo para restaurantes, lanchonetes e afins no Parque do Ibirapuera, por exemplo. Além disso, com a nova lei do Plano Diretor, grande parte do entorno das represas passou a ser considerada como parque (na nova classificação de parque de orla).

O trecho que permite esse avanço do comércio de alimentação não abarca o que chama de “comércio de diversão”, embora não especifique quais atividades estariam excluídas da autorização. No entorno da Represa Guarapiranga, por exemplo, há uma demanda para a regularização de restaurantes, bares e afins em funcionamento há mais de 20 anos, o que chegou a ser apresentado por um participante de em uma audiência pública recente da revisão no âmbito municipal.

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Além disso, a própria Prefeitura chegou a desenvolver um estudo e apresentá-lo em consulta pública no ano passado para a concessão de espaços na orla da Avenida Atlântica por 25 anos. O plano de negócios sugerido à época trazia a possibilidade de funcionamento de restaurantes, elencando o comércio de alimentos e bebidas como a maior fonte de renda potencial.

No mapa interativo do zoneamento atual, desenvolvido pelo Estadão, é possível selecionar a visualização exclusivamente das Zepams da cidade. A ferramenta foi desenvolvida a partir da base de dados oficial da Prefeitura (Geosampa). O material também permite a busca por endereço.

Além disso, a revisão do zoneamento permite a instalação de casas de eventos e comércio de alimento de grande porte (com público acima de 500 pessoas) em Zona Mista localizada em área ambiental (ZMa) caso o lote tenha ao menos 20 mil m² e ao menos 50% de área verde. Esse tipo de zoneamento hoje ocorre basicamente nos extremos da cidade, em distritos como Parelheiros, Capela do Socorro e M’Boi Mirim, na zona sul, e Perus e Jaraguá, na norte, por exemplo.

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O que pode mudar em relação a vilas?

O projeto de lei prevê mecanismos que dificultam e desestimulam a demolição de vilas reconhecidas como tal pelo poder público, independentemente do endereço. Na versão preliminar, o texto indicava apenas essa limitação aos conjuntos localizados nos “eixos de transporte”, que são as áreas no entorno de metrô, trem e corredor de ônibus e que recebem incentivos municipais para a construção de prédios altos com apartamentos.

Com a proposta, as vilas reconhecidas e os imóveis com frente para rua sem saída com largura de até 10 m serão classificados como Zona Predominantemente Residencial (ZPR). Esse tipo de zoneamento veta construções de mais de 10 metros de altura e tem outros tipos de restrições. O Estadão tem um especial que explica as características dos principais tipos de zona da cidade.

Na prática, essa proposta pode ter um resultado limitado na prática, segundo especialistas apontaram ao Estadão. Isso porque o projeto de lei indica que o reconhecimento de um conjunto como vila dependerá de uma análise “caso a caso” por um órgão técnico municipal. Isto é, não seria uma restrição automática.

Recentemente, vilas em Pinheiros e perto do Ibirapuera foram temporariamente tombadas em meio a uma mobilização contrária de parte dos vereadores à verticalização. Muitos locais popularmente vistos como vila não estão assim registrados.

O projeto mantém a proposta da minuta, de permitir que construções não geminadas e imóveis hoje com uso de comércio e serviços também sejam entendidas como vilas. O conceito passa a ser o seguinte:

“Agrupamento de construções originalmente residenciais realizadas em conjunto com abertura de passagem que não tenham origem em arruamento aprovado, sem a instituição de condomínio, podendo ser formado por um ou mais lotes fiscais, sendo ou não composto por casas geminadas, cujo acesso se dá por meio de via de circulação de veículos de modo a formar rua ou praça no interior da quadra com ou sem caráter de logradouro público.”

A proposta também determina que o endereço das vilas reconhecidas siga com o zoneamento de ZPR mesmo se o conjunto for total ou parcialmente demolido. Ou seja, não seria mais possível derrubar uma vila inteira para construir um prédio alto, já que permaneceria a restrição para construções de até 10 m de altura. Esse trecho é criticado pelo mercado imobiliário, como mostrou o Estadão.

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Por outro lado, o projeto de lei permite que terrenos que compõem uma vila sejam “remembrados”. Essa fusão de lotes poderia ocorrer só no caso de anuência de dois terços dos proprietários de imóveis do conjunto. Isso facilita transformações e ampliações dos imóveis desde que mantenham a característica horizontal.

Proposta veta ferros-velhos e comércio de material reciclável no centro

O projeto também prevê a proibição da instalação de ferros-velhos e comércios de materiais destinados à reciclagem em parte da região central. Essa proibição abrange o distrito Sé, grande parte dos distritos República e Brás e pequenos trechos do distrito Consolação.

Esse é o perímetro do Requalifica Centro. Trata-se de um programa municipal que incentiva a reforma e a ampliação de edifícios considerados ociosos na região central.

O que é o “freio” ao boom de microapartamentos?

O boom de studios, quitinetes e novos microapartamentos está atrelado a um decreto de 2016 que permite o entendimento desse tipo de espaço como “não residencial”, além de outros motivos (como a conjuntura econômica). Parte do mercado imobiliário tem lançado empreendimentos com unidades minúsculas classificadas oficialmente como “serviços de hospedagem” (Airbnb e similares) e apartamentos residenciais, de modo a ter acesso a incentivos para “uso misto”.

Na prática, isso significa que o condomínio pode hoje construir 20% a mais do que o normalmente permitido e ter “desconto” na outorga onerosa, taxa cobrada das construtoras e calculada com base na área construída computável. Esse incentivo, nos casos dos studios para hospedagem, é excluído na nova versão da lei.

Casas poderão ser multadas pelo PSIU?

Após um vaivém nas últimas semanas revelado pelo Estadão, o Município retirou totalmente o trecho que previa a fiscalização de limite de barulho em residências pelo Programa Silêncio Urbano (PSIU). A versão anterior do texto já não trazia a previsão de multa ou penalidade, mas ainda destacava a necessidade de obediência ao limite de ruído em “qualquer imóvel, inclusive nas edificações de uso residencial” no caso de vãos abertos (como portas, janelas e afins) e áreas descobertas (como terraços, varandas e assemelhados).

Na justificativa enviada agora ao Legislativo junto ao projeto de lei, a gestão Nunes diz que o trecho foi excluído após uma “reavaliação da proposta”, que seria inexequível. “Concluiu-se pelo reconhecimento da inviabilidade da imposição de atividade fiscalizatória de posturas municipais no âmbito domiciliar, em face das garantias constitucionais de sua inviolabilidade, havendo outros modos de repressão à utilização abusiva da propriedade, amparados pelo Direito Civil, no âmbito dos direitos de vizinhança”, apontou.

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O projeto também adia o prazo de entrega do mapa de ruído urbano da cidade para 2029. A legislação atual, de julho de 2016, exige a apresentação em até sete anos. Isto é, o prazo se esgotou há mais de dois meses.

Esse mapa seria uma ferramenta voltada a embasar as decisões públicas. Entre elas, estão a identificação de áreas prioritárias para redução de ruídos e a preservação de zonas com níveis sonoros considerados apropriados.

Há mudanças para as fachadas ativas?

A proposta traz uma mudança em relação à lei atual: a fachada ativa passaria a contemplar não só comércios e serviços no térreo dos prédios, mas também no pavimento imediatamente inferior e superior, desde que tenha acesso direto pela rua. Esse tipo de empreendimento tem incentivos municipais, a fim de aumentar o fluxo de pessoas na rua.

Além disso, o projeto retira a obrigação de empreendimentos com mais de 10 mil m² implementarem a fachada ativa nas entradas voltadas a ruas sem saída, vilas, vielas sanitárias, viadutos, passarelas e vias de pedestre.

Novo zoneamento de SP vai liberar prédio alto no seu bairro? Busque endereço em mapa interativo

Os eixos são as vizinhanças a estações de trem e metrô e corredor de ônibus com incentivos públicos para a verticalização. Essas regiões concentram a maior parte dos apartamentos lançados na cidade, em locais como Brooklin, Butantã e Pinheiros.

O projeto de lei apresentado pela gestão Nunes não aplica toda a expansão autorizada na nova lei do Plano Diretor, porém traz um aumento expressivo. No geral, a ampliação envolve imóveis a uma e duas quadras dos limites atuais dos eixos de verticalização no entorno das estações, o que inclui locais que hoje têm movimentos organizados contra o avanço de prédios altos, como Pinheiros, Vila Madalena e Vila Mariana, dentre outros.

A expansão não é, contudo, uniforme. Isso porque a legislação atual veta a transformação de alguns bairros em eixo, como aqueles que são predominantemente ou estritamente residenciais, por exemplo. Além disso, a proposta da Prefeitura traz mais alguns limites para a ampliação, como no caso de quadras em vias estreitas ou no entorno de algumas áreas tombadas.

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Dentre outros aspectos, não poderão ser eixo de verticalização as quadras:

  • demarcadas como “área envoltória” de 13 conjuntos de imóveis tombados ou em estudo de tombamento da Penha, da Chácara das Jaboticabeiras (na Vila Mariana), do Pacaembu-Perdizes, do Ambiental Sumaré, dos Jardins, do Jardim Lusitânia, do Eixo Domingos de Morais, do São Joaquim/Pirapitingui (Res. 22/2018), do Eixo Histórico Santo Amaro, da Praça Vilaboim (Higienópolis), do Ambiental Chácara Klabin, da Bela Vis e da Freguesia do Ó;
  • de vilas reconhecidas pela Prefeitura como tal (mediante análise “caso a caso”;
  • com frente para rua sem saída ou via com largura de até 8 metros;
  • em que ao menos metade tenha declividade superior a 30%;
  • com cursos d’água, áreas de preservação, áreas de risco hídrico e geológico, áreas sujeitas a decalque e problemas geotécnicos; com remanescentes da Mata Atlântica etc;
  • todo o perímetro tombado do Bixiga, que deverá ser alvo de plano específico posterior.

No caso das quadras que deixarão de ser eixo, o projeto indica qual será o novo zoneamento. O Estadão tem um guia sobre as características gerais das principais zonas. Essas são as mudanças propostas:

  • vilas reconhecidas como tal e quadras voltadas a rua com até 10 m de largura viram Zona Predominantemente Residencial, que permite construções de até 10 m de altura;
  • perímetro tombado do Bixiga, quadras voltadas a rua sem saída com mais de 10 m de largura e vias em geral com até 8 m de largura viram Zona Mista, que permite imóveis de até 28 m de altura;
  • áreas demarcadas como futuros parques na nova lei do Plano Diretor viram Zona Especial de Proteção Ambiental;
  • eixos de verticalização não mais previstos passam a ser Zona Mista, que permite prédios de até 28 m de altura;
  • demais quadras antes consideradas eixos de verticalização passam a ser Zona de Centralidade, que permite prédios de até 48 metros.

Cada zona tem uma lista específica de atividades comerciais, de serviços e industriais permitidas. Neste material, o Estadão explica as regras de alguns estabelecimentos mais polêmicos, como bares, dark kitchens e casas de festas na lei atual.

O limite de ruído também varia conforme a zona. Neste especial, o Estadão explica as regras atuais do PSIU de acordo com o local e horário do dia.

A partir de dados georreferenciados disponibilizados pelo Município, o Estadão elaborou um mapa interativo com as mudanças propostas para a expansão dos eixos. O material também mostra as quadras que deixarão de permitir a construção de prédios altos se for aprovado o projeto de lei. Confira abaixo:

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