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Quilombo Saracura: Parecer do Iphan recomenda suspensão de escavações do metrô após novos achados

Arqueóloga sugere que trabalhos da Linha 6 no Bixiga sejam retomados após manifestação da Fundação Palmares e ministérios; outro bolsão arqueológico foi encontrado, com peças que remetem a religião de matriz africana

Foto do author Priscila Mengue
Por Priscila Mengue
Atualização:

Um parecer do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) indicou a suspensão temporária da retomada de escavações na área da Estação 14 Bis da Linha 6-Laranja do Metrô, no Bixiga, bairro do centro da cidade de São Paulo. A decisão foi motivada pela identificação de um novo bolsão de artefatos arqueológicos e de duas peças cerâmicas que remetem a religiões de matriz africana, indícios de que o local pode conter remanescentes do antigo Quilombo Saracura, que existiu ao longo do córrego de mesmo nome.

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O documento aponta que, por envolver um possível quilombo urbano, a avaliação sobre o local não deveria envolver apenas a área arqueológica, mas também outros órgãos e áreas do governo federal relacionados ao resgate e preservação da memória negra, como a Fundação Cultural Palmares, os Ministérios da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e Cidadania e da Cultura e os setores de patrimônios material e imaterial do Iphan. Os trabalhos arqueológicos estão restritos ao monitoramento da área desde fevereiro, por causa das chuvas.

“O afloramento de materialidade de possível associação com quilombo nesta área requer a inserção ao debate sobre direito à memória e reparação de patrimônio sensível, de todos os órgãos de competência no componente de matriz africana”, afirma a arqueóloga Gladys Mary Santos Sales no documento. O parecer destaca que a Fundação Palmares foi procurada sobre o tema no ano passado, mas ainda não se manifestou.

Fragmentos de cerâmica encontrados podem ter relação com religião de matriz africana Foto: Relatório de Monitoramento Arqueológico – Programa de Arqueologia Preventiva da Linha 6 do Metrô de São Paulo /Reprodução

No momento, as obras da estação estão praticamente paradas desde o ano passado, com exceção da instalação de lamelas para a contenção do solo e a realocação de tubulações de água e esgoto. Os trabalhos são de responsabilidade do consórcio Linha Uni (liderado pela Acciona), que foi cobrado no parecer para apresentar um detalhamento das obras que são estritamente necessárias para a segurança do terreno e do entorno.

O parecer é uma recomendação técnica que servirá de base para uma decisão do Iphan. No momento, a maioria dos trabalhos no local está suspensa e a retomada depende da autorização do instituto, que ainda avalia o pedido.

Em nota, a Linha Uni destacou que “trabalha com equipes altamente capacitadas e especializadas em achados arqueológicos” e que tem “dialogado com as partes interessadas para, após a identificação da origem dos achados, apoiar a comunidade em futuros projetos educativos e de preservação do patrimônio”. “Desde que foi feito o primeiro pedido de solicitação para suspensão das obras por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Linha Uni vem seguindo todas as solicitações do órgão para análise do material encontrado no sítio arqueológico. A concessionária seguirá atendendo a determinação do Iphan e discutirá com as autoridades competentes os próximos passos para o seguimento do projeto.”

A arqueologia no local é realizada pela empresa A Lasca, contratada pela concessionária. Desde 7 de fevereiro, os trabalhos arqueológicos mais aprofundados estão suspensos diante da intensificação das chuvas em São Paulo. Nos últimos meses, a equipe tem feito exclusivamente o monitoramento 24 horas da instalação de lamelas de contenção e da realocação das tubulações de água e esgoto.

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Durante esses trabalhos de monitoramento, foi identificado o novo bolsão arqueológico em 30 de março, nas imediações da Rua Cardeal Leme. Há a expectativa de que parte dos novos achados seja do século 19. Entre eles, estão fragmentos de louça, vidro, cerâmica e couro (de sapatos).

Sítio arqueológico

As obras da estação de metrô estão concentradas em seis terrenos nas imediações da Praça 14 Bis, incluindo o da antiga quadra da escola de samba Vai-Vai. O sítio arqueológico Saracura-14 Bis foi identificado em abril do ano passado em um perímetro dentro da obra.

Desde então, mais de 300 peças foram encontradas no local, porém ainda em camadas mais acessíveis, a até 3 metros de profundidade, que contemplam em parte um aterramento feito na região. A equipe aguarda o encerramento da fase de contenção do solo para a realização de escavações mais profundas. Ao longo dos últimos anos, milhares de fragmentos e objetos foram encontrados em outros sítios arqueológicos identificados durante a implantação da Linha 6, principalmente na zona oeste.

O movimento negro e moradores do bairro têm defendido que o acervo encontrado na obra dê origem a um memorial ao antigo quilombo, também chamado de “Pequena África”. Os ativistas também reivindicam a mudança do nome da estação para “Saracura Vai-Vai”, a fim de marcar a história negra do Bixiga.

Imagem da antiga quadra da escola de samba Vai-Vai antes de ser demolida para obra da Linha 6-Laranja Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Aquilombados viviam na região, às margens do Córrego Saracura

No ano passado, um relatório técnico já apontava que “a profundidade dos vestígios parece aproximá-los dos períodos em que o Córrego Saracura ainda corria a céu aberto e aquilombados viviam à sua margem”. “Caso isto seja comprovado na escavação arqueológica planejada, esses materiais certamente serão remanescentes do Quilombo Saracura, cuja localização é historicamente comprovada.”

O documento cita que o Quilombo Saracura se instalou às margens do córrego no fim do século 19, em uma área então periférica diante das dimensões paulistanas da época, concentradas no centro histórico. “Essa ocupação deve ter se expandido pela vertente do córrego e resistiu como permanência cultural até a década de 1970, quando grandes transformações urbanas geraram alterações significativas na topografia do terreno e soterramento do solo original desse assentamento”, diz.

“O resgate da área definida poderá trazer informações e materiais muito relevantes para a história de ocupação do Bixiga, a presença do Quilombo da Saracura e dos descendentes de seus antigos moradores que, de outra forma, não teriam visibilidade. Ao passo que uma porção do sítio será resgatada para gerar conhecimento sobre esse passado, outros testemunhos seguirão preservados sob as ruas que se expandem para o restante do Bixiga”, ressalta em outro trecho.

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Fragmento de malga (tijela) encontrado no sítio arqueológico Saracura/Vai-Vai, com decoração pintada à mão Foto: A Lasca Arqueologia/Relatório Parcial da Estaçãao 14 Bis-Saracura/Reprodução

Uma das principais hipóteses é de que o sítio arqueológico seja uma área de descarte, uma das principais fontes de identificação de artefatos arqueológicos. “Interpreta-se que estes objetos tenham sido descartados em lixeiras próximas às antigas residências do quilombo, em um período em que a sua formação original já tivesse vivenciado modificações, com a ocupação se espalhando além do fundo de vale para as vertentes do córrego Saracura; assim, crescia a população do bairro, em muito formada pelos descendentes dos aquilombados”, pontua o relatório de 2022.

Há a possibilidade também de que sejam encontrados materiais de outros momentos históricos, como do início das atividades do então cordão Vai-Vai na região e da formação do Quilombo Saracura, no século 19. “O resgate arqueológico do sítio Saracura/14 Bis permitirá compreender melhor os objetos que compõem a história deste local e as narrativas possíveis de serem escritas quanto à permanência e as modificações pelas quais passaram os antigos moradores do Quilombo da Saracura e suas formas de resistência e existência no território do Bixiga”, explica o relatório.

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