Um ano após os ataques de 8 de Janeiro, em Brasília, usuários nas redes sociais ainda difundem a versão falsa de que a destruição das sedes dos Três Poderes foi causada por “infiltrados” nos protestos. Essa foi uma narrativa que continuou a circular ao longo do ano em peças de desinformação, muitas vezes compartilhadas por agentes públicos.
“Quem quebrou tudo foram os esquerdistas infiltrados. Está tudo nas imagens”, diz um post identificado pelo Estadão Verifica, publicado no último dia 29 de dezembro. Outra postagem opina, no final de novembro, que “a esquerda escondeu os infiltrados do debate (na CPMI do 8 de janeiro)”.
Após o 8 de janeiro, o Estadão analisou horas de transmissões ao vivo, listas de passageiros de ônibus, postagens em redes sociais e centenas de imagens que comprovam que os atos foram premeditados e organizados nos mínimos detalhes por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e não foram uma ação espontânea. As imagens analisadas pelo jornal apontaram a identidade de 88 participantes dos atos.
Mesmo assim, a tese dos infiltrados, que surgiu logo após os ataques, inclusive com o uso de imagens descontextualizadas – como uma bandeira do PT nas mãos de um invasor que, na realidade, tinha sido furtada no Congresso – permaneceu circulando na internet por meses.
Também se espalhou um boato de que os “patriotas” só chegaram à Praça dos Três Poderes às 17h, e que a destruição vista antes desse horário, portanto, tinha sido feita por infiltrados. Era falso, porque o bloqueio de policiais foi furado às 14h43 e imagens de emissoras de TV já mostravam aglomeração de golpistas ao vivo às 15h12.
Relembre alguns dos principais boatos sobre os atos antidemocráticos de 8 de janeiro desmentidos pelo Verifica:
Falsa identificação de pessoas
Além da narrativa de que os atos de vandalismo foram praticados por infiltrados, e não por apoiadores de Bolsonaro, as redes sociais foram tomadas por publicações que apontavam pessoas específicas como infiltrados do PT ou de movimentos sociais de esquerda.
Foi o caso de uma publicação com mais de 150 mil visualizações no Facebook que “identificava” 33 petistas infiltrados nos atos. Na realidade, as pessoas que apareciam no vídeo eram presos de El Salvador, que havia sido publicado originalmente quase um mês antes dos ataques em Brasília – 13 de dezembro de 2022.
O caso do homem que vandalizou o relógio de Balthazar Martinot, peça do século XVII dada de presente ao Brasil por Dom João VI, também foi tema de desinformação. Primeiro, disseram que o homem flagrado jogando o relógio no chão era um militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST); depois, que ele era um petista infiltrado que mudou o horário do relógio histórico para incriminar bolsonaristas.
No final das contas, se tratava de Antônio Cláudio Ferreira, um mecânico de 30 anos, apoiador de Bolsonaro, preso dias depois dos ataques, em Uberlândia (MG). O relógio de 400 anos, que mostrava 12h35 nas imagens de câmeras de segurança, está parado há pelo menos dez anos por conta da dificuldade técnica em reparar a peça.
Outra pessoa falsamente apontada em postagens como petista infiltrada foi Ana Priscilla Azevedo, que liderava os grupos de Telegram por onde os atos golpistas de 8/1 foram convocados. Ela foi presa em Luziânia (GO), em 10 de janeiro. Durante a invasão em Brasília, ela gravou a si mesma no local. Nas redes sociais, se identificava como “patriota”.
Em uma transmissão ao vivo feita no dia 5 de janeiro dentro de um acampamento bolsonarista no entorno do Quartel General do Exército em Brasília (DF), Azevedo disse: “Nós vamos colapsar o sistema, nós vamos sitiar Brasília, nós vamos tomar o poder de assalto, o poder que nos pertence”. Em entrevista ao Estadão em setembro do ano passado, Ana Priscilla disse que apoia e ainda reconhece Bolsonaro como chefe de Estado, apesar da vitória de Lula nas eleições de 2022.
Mortos na sede da Polícia Federal
Em 10 de janeiro do ano passado, apenas dois dias após os atos antidemocráticos na Praça dos Três Poderes, viralizaram publicações que acusavam o governo Lula de genocídio após uma idosa de 77 anos supostamente morrer no “campo de concentração” da Polícia Federal para onde foram levados detidos dos ataques golpistas. A morte era mentira, mas, mesmo assim, a deputada federal Bia Kicis (PL-DF) chegou a levar o caso ao plenário da Câmara dos Deputados e dizer que tinham sido negados comida e água à idosa, e que ela havia falecido horas depois de ser “destratada e descuidada”.
A imagem usada nas postagens que falavam sobre a idosa era de um banco de imagens e não mostrava uma pessoa presa no dia 8/1. A mulher fotografada era Deolinda Tempesta Ferracini, que morreu em 10 de outubro de 2022, em Vinhedo (SP), em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC). Ela tinha 80 anos e foi fotografada no dia 24 de dezembro de 2018 por Edu Carvalho, que é casado com a neta dela, Juliana Cuchi Oliveira.
“Me senti impotente, a internet tem uma força absurda tanto para o bem quanto para o mal. Estamos tentando ao máximo avisar as pessoas, mas muitas desacreditam e ainda pedem para provar, isso dói muito e só vai saber quem estiver na pele um dia. Que isso acabe logo”, disse Juliana, na época, ao Verifica.
A morte da idosa nas dependências da PF foi desmentida pela corporação e a deputada pediu desculpas em seguida. Naquela ocasião, não havia nenhum registro de óbito entre as pessoas detidas por participação nos atos antidemocráticos. Em novembro do ano passado, um dos presos do 8 de janeiro, Cleriston Pereira da Cunha, 46 anos, morreu após passar mal durante o banho de sol no Complexo Penitenciário da Papuda.
A defesa dele havia pedido liberdade provisória com base no quadro de saúde de Cleriston, que era diabético e hipertenso, e existia um parecer favorável da Procuradoria Geral da República (PGR), mas o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não tinha analisado o pedido da defesa quando Cleriston morreu.
Apoio internacional
Algumas postagens ignoraram o apoio internacional recebido por Lula após os ataques em Brasília, e tentaram passar a impressão de que os chefes de outras nações apoiavam os vândalos. Um vídeo de um discurso do presidente russo, Vladimir Putin, circulou nas redes com uma legenda falsa segundo a qual ele teria denunciado supostas fraudes eleitorais no Brasil. Na verdade, ele comentava sobre um ataque ucraniano a uma ponte da região da Crimeia.
Postagens também afirmavam que “um tribunal internacional” teria ordenado que presos no 8 de janeiro fossem soltos. A mentira não se sustentava porque tribunais internacionais podem condenar ou sugerir a revogação de decisões de um País, mas não têm poder para obrigar o cumprimento da decisão. Um documento usado pelas postagens como prova, na verdade, era retirado de um parecer da Procuradoria Geral da República do Brasil. Nele, o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos pedia a liberdade com medidas cautelares para acusados de crimes de menor periculosidade, e manutenção da prisão preventiva para acusados de crimes graves.
A reprodução de um comentário repleto de desinformação, feito por um jornalista norte-americano, também serviu para espalhar as mentiras sobre os ataques. O comentarista Matthew Tyrmand chegou a dizer no canal Fox News, dos Estados Unidos, a mentira de que duas pessoas teriam morrido na sede da Polícia Federal.
A Fox News é uma emissora que ganhou relevância entre o eleitorado de Donald Trump por causa de seu quadro de comentaristas alinhado ao ex-presidente. A emissora foi processada por difamação pela empresa fabricante de urnas utilizadas nas eleições dos Estados Unidos por reproduzir e ampliar alegações falsas de Trump de que o processo eleitoral de 2020 teria sido fraudado. Em 2023, a emissora aceitou pagar R$ 4 bilhões para encerrar o processo.
Orquestração de Flávio Dino e Lula
Um elemento comum a algumas postagens desinformativas era a acusação de que Lula e o então ministro da Justiça Flávio Dino saberiam de antemão sobre os ataques, mas não os impediram para imputar o caráter violento aos apoiadores de Bolsonaro. Essa acusação não se sustenta em fatos nem nas conclusões obtidas pelas investigações conduzidas até o momento.
Um vídeo de câmeras de segurança do Palácio do Planalto foi tirado de contexto para sugerir que o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional Gonçalves Dias teria autorizado a entrada de vândalos pelos fundos do Planalto. Na verdade, as imagens mostravam Dias conduzindo pessoas para fora do prédio, depois que ele já havia sido invadido. Ele foi exonerado do cargo após a divulgação das imagens.
A alegação de que integrantes do governo teriam liberado a entrada dos vândalos no Palácio do Planalto é disseminada até hoje. “Os portões foram abertos por seguranças do próprio Governo Federal, e eles (os presos) viram um portão aberto e entraram para dentro, civilizados como são”, lê-se em uma postagem publicada no último dia 31.
Outro vídeo das câmeras de segurança foi utilizado fora de contexto para sugerir que Lula estava em Brasília durante os ataques, contrariando o fato de que ele visitou Araraquara (SP) no período da tarde para conferir estragos causados por fortes chuvas. Imagens em que o presidente aparece no Palácio do Planalto, utilizadas pelas postagens enganosas, foram gravadas à noite, quando o petista estava de volta da viagem e inspecionou a destruição causada pelos vândalos.
A culpa e as omissões pelos ataques às sedes dos Três Poderes foram apuradas pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Congresso Nacional. O relatório final apontou Bolsonaro como o “mentor intelectual” e o acusa de quatro crimes: associação criminosa, violência política, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
A Câmara Legislativa do Distrito Federal conduziu uma investigação própria. Em seu relatório final, foram indiciadas mais de 100 pessoas, dentre elas Gonçalves Dias e Gustavo Henrique Dutra de Menezes, chefe do Comando Militar do Planalto. Bolsonaro e Dino não foram incluídos.
Não há notícia de investigação policial sobre uma suposta orquestração por parte do governo Lula para a realização dos ataques. Os inquéritos abertos no STF buscam identificar os realizadores, os financiadores e os incitadores dos ataques. Os ataques foram planejados e mobilizados em grupos de redes sociais mantidos por apoiadores de Bolsonaro.